flora tristan, uma semente subversiva

Luna Ribeiro Campos*

No dia 7 de abril de 1803, há exatos 218 anos atrás, nascia Flore Celestine Therèse Henriette Tristán y Moscoso, mais conhecida apenas como Flora Tristan. Trabalhadora, mãe e escritora, Flora Tristan fez parte de uma geração de mulheres que contribuiu para a emergência do socialismo francês. Sua intervenção nos debates políticos e filosóficos dos anos 1830-40 se deu através da publicação de livros, artigos, panfletos e ensaios onde desenvolveu uma série de argumentos em torno de dois pontos principais: a condição legal e moral de subalternidade das mulheres e as condições precárias de vida e trabalho da classe operária. 

Os itinerários de Flora Tristan permitem iluminar o incipiente debate que surgia na Europa nas primeiras décadas do século XIX ao redor das ideias socialistas e feministas, no qual ela viria a ter papel de destaque. Sua aproximação dos círculos socialistas se deu a partir dos grupos formados em torno de três grandes referências: Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen – que muitos de nós conhecem apenas como “socialistas utópicos”, segundo a classificação feita por Marx e Engels no Manifesto Comunista. O fato de compartilharem visões mais ou menos progressistas sobre as relações de gênero e o casamento atraiu muitas mulheres para essas correntes teóricas, o que contribuiu para que a questão da emancipação feminina ganhasse espaço e fosse pensada – pelo menos por elas – lado a lado com a luta da classe trabalhadora.    

Filha de uma francesa de origem humilde e de um peruano membro do exército espanhol, oriundo de uma das famílias mais ricas do Peru, Flora nasceu na França e passou seus primeiros anos numa casa confortável nos arredores de Paris. A morte prematura do pai, quando Flora tinha quatro anos, deixou filha e mãe em uma situação financeira precária, uma vez que a união de seus pais foi feita de maneira clandestina e elas não tiveram direito à herança paterna. Assim, além de deserdada, Flora também carregava o peso de ser uma filha ilegítima (estatuto dos filhos nascidos fora do casamento, bastardos). Além disso, após um curto e infeliz casamento com um homem violento, e impossibilitada de se divorciar, Flora se tornou uma mulher separada, acumulando mais uma característica desfavorável para as mulheres naquele contexto.

Esses fatores, marcantes em sua biografia, serão refletidos e teorizados em diversos momentos de sua obra, se condensando na figura do pária – metáfora utilizada por Tristan para descrever a situação das mulheres em geral e a si própria, se estendendo posteriormente para incluir os excluídos, os escravizados. Em suma, a imagem do pária representa todos aqueles e aquelas considerados indignos de “participar dos benefícios da humanidade”, que ficaram de fora das promessas de igualdade da Revolução Francesa. Segundo Eleni Varikas, “o pária remete à escravidão, à subjugação, à ideia de uma situação objetiva – um sistema de exploração econômica e exclusão política -, mas contém ainda uma forte carga de subjetividade e intersubjetividade ligadas às percepções que a sociedade tem dele” (Varikas, 2014: 51).

A vida de Flora Tristan foi marcada por muitas viagens, trânsitos e deslocamentos, motivados por razões diversas. Durante os anos 1820, trabalhando como dama de companhia para uma família abastada, faz suas primeiras viagens à Inglaterra. Esse trabalho também funcionou como uma maneira de fugir do marido, que não aceitava a separação e a perseguia. Em 1833, na expectativa de resgatar a herança paterna, Flora embarca sozinha para o Peru. A viagem, que durou ao todo quase um ano, é um ponto de inflexão na obra da autora, pois é ao retornar à França que começa a publicar seus escritos. O contato com a realidade latino-americana, com a escravidão, com a família que nega reconhecê-la como filha legítima; suas experiências como uma mulher que não encontra lugar no mundo, que se sente à margem da família, da nação e das leis, tudo isso vai ser utilizado como fertilizante para suas reflexões teóricas e políticas.  

Em 1835 estreia com um pequeno texto intitulado Necessidade de acolher bem as mulheres estrangeiras, onde analisa a questão da migração e dos deslocamentos a partir de uma perspectiva de gênero, apontando para as dificuldades e os constrangimentos enfrentados pelas mulheres. O panfleto, cujo conteúdo é extremamente atual, reflete uma preocupação da autora com as mulheres que, como ela, viajavam sozinhas e eram (ou se sentiam) estrangeiras. Além de refletir sobre o declínio das práticas hospitaleiras e da solidariedade nas grandes cidades, Flora Tristan já esboça muitos dos temas que vão figurar em sua obra posterior. O compromisso internacionalista, a luta pela autonomia feminina, a percepção de como gênero e classe são fatores que se determinam mutuamente e a necessidade de superar o isolamento individual através de associações, da organização coletiva. 

Em 1837 ela publica os relatos da viagem ao Peru em uma obra de fôlego, intitulada Peregrinações de uma pária. Além das observações típicas sobre os locais visitados, Tristan abordou temas como escravidão, economia, política, cultura, costumes e direito. O relato, que também é recheado com seus dramas pessoais por causa da difícil relação com a família peruana, se destaca pela atenção concedida à observação da vida das mulheres – criollas, indígenas, escravizadas e europeias – e pela defesa do direito ao divórcio, considerado pela autora como a causa dos seus males.

As sucessivas viagens à Inglaterra deram origem ao livro Passeios em Londres (1840), onde a autora documenta as péssimas condições de vida do proletariado inglês. Embora dessa época nos seja mais conhecido o livro de Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, este só foi publicado cinco anos depois, em 1845, e apesar de não fazer referência explícita a Tristan, é evidente sua intertextualidade. Além de fábricas, Tristan visitou e escreveu sobre os bairros mais pobres de Londres, sobre prisões, casas de prostituição, hospitais psiquiátricos e orfanatos, com o objetivo de expor o drama social vivido pelo povo da maior potência do século XIX.  

Um de seus livros mais importantes, e que a lançou como figura inescapável da história e da luta do movimento operário, se intitula União Operária e foi publicado em 1843, com uma primeira tiragem de 4 mil exemplares feita através de contribuições voluntárias, obtidas por um trabalho feito de porta em porta nos arredores de Paris. Neste livro, Tristan expande a definição de operário: “[…] entendemos por operário e operária todo indivíduo que trabalha com suas mãos, não importa como. Assim, empregados domésticos, porteiros, mensageiros, lavradores e toda gente pobre serão considerados operários” (Tristan, 2015:137). 

União operária é uma iniciativa ao mesmo tempo teórica e prática: Tristan demonstrou a necessidade da constituição política da classe trabalhadora e se esforçou para colocar essa ideia em prática ao viajar por dezenas de cidades na França para ler e divulgar seu livro entre operários e operárias – Tristan faz questão de marcar o gênero das palavras para deixar clara a presença das mulheres. É neste livro que a autora apresenta um desenvolvimento teórico mais apurado das formas de organização do proletariado e aponta algumas ideias-chave: o princípio da autoemancipação da classe trabalhadora; a urgência em instruir as mulheres e os homens do povo e a convicção de que constituição da classe operária só pode ser bem sucedida se for reconhecido o princípio da igualdade de direito entre o homem e a mulher.  

 É nesta obra também que Tristan reflete sobre as causas históricas da inferioridade feminina. A autora dedica um capítulo inteiro – “Por que eu menciono as mulheres” – para abordar essa situação: “até o momento a mulher não contou para nada nas sociedades humanas. – Do que isto resulta? Que o padre, o legislador e o filósofo a trataram como uma verdadeira pária. A mulher (é a metade da humanidade) foi colocada fora da igreja, fora da lei, fora da sociedade […]”. (Tristan, 2015:110). Além de denunciar a opressão das mulheres em geral e das operárias em particular, União operária é uma obra original por atrelar a emancipação dos operários à das mulheres, geralmente ausentes das tentativas de organização dos trabalhadores.

A produção escrita de Flora Tristan pode e deve ser inserida dentro da tradição do pensamento socialista que se formou durante a primeira metade do século XIX, geralmente ofuscada pela produção marxista posterior. Seu pensamento faz parte da trama mais ampla que foi nutrindo e inspirando os trabalhadores e as revoluções posteriores e contribuindo para a constituição do movimento operário (Díaz, 2012).     Sua obra nos mostra que esse ambiente intelectual e político foi marcado pela produção teórica e pela militância de mulheres que fizeram reivindicações que hoje podemos chamar de feministas. Se posteriormente a causa da emancipação feminina perdeu a centralidade nos projetos mais amplos de emancipação da classe trabalhadora, certamente não foi por falta de referências. O chamado que encerra o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels em 1848, “proletários de todos os países, uni-vos!”, captura, ao fim e ao cabo, um espírito político de todo familiar à União Operária, idealizada por Flora Tristan quatro anos antes. 

Referências bibliográficas
DÍAZ, Hernán M. “Flora Tristán: su papel en la constitución del socialismo y de la clase obrera francesa”. Revista Archivos de historia del movimiento obrero y la izquierda, no 1, 2012. 
TRISTAN, Flora. Nécessité de faire un bon accueil aux femmes étrangères. Édition présentée et commentée par Denys Cuche, postface de Stéphane Michaud. Paris, L’Harmattan, 1988.
TRISTAN, Flora . Peregrinações de uma pária. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000 [1838].
TRISTAN, Flora . Promenades dans Londres ou L’aristocracie et les prolétaires anglais. Paris: François Maspero, 1978 [1840].  
TRISTAN, Flora. União Operária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2016 [1843].
VARIKAS, Eleni. A escória do mundo – as figuras do pária. São Paulo: Editora UNESP, 2014.


* Luna Ribeiro Campos é professora de Sociologia no CEFET-RJ. Doutoranda em Ciências Sociais na UNICAMP.

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