
Resenha de Feminist City: Claiming Space in a Man-Made World, de Leslie Kern
Daniela Costanzo
Feminist City: Claiming Space in a Man-Made World é o último livro de Leslie Kern, professora de geografia e meio ambiente e diretora de estudos de gênero e mulheres da Mount Allison University, no Canadá. As agendas de pesquisa de Kern giram em torno dos temas da segregação urbana, da cidade neoliberal e do consumo com recortes de gênero, sexualidade, raça e classe. Sua produção passa por estudos sobre condomínios, planejamento urbano, liberdade e medo nas cidades.
No livro em questão, Kern opta por uma narrativa bastante pessoal de sua experiência vivendo no subúrbio e no centro de Toronto, além de um período em Londres. À primeira vista pode parecer pouco interessante e muito localizado, mas ao longo da narrativa a autora vai trazendo referências, análises e explicações que nos fazem entender como as cidades são feitas para serem hostis às mulheres em diversas partes do mundo. Além disso, é interessante perceber que as referências que Kern traz de mulheres que estudaram o espaço como um lugar de supremacia masculina datam em sua maioria dos anos 1970 e 1980, o que nos faz questionar por que só agora o debate de espaço e feminismo tem aparecido mais por aqui.
O livro levanta diversos temas, por isso selecionei alguns que acredito serem os mais interessantes. Em primeiro lugar, vale a menção à questão histórica das mulheres no espaço público da cidade moderna europeia, que, como lembra a pesquisadora, acabou por produzir categorizações rígidas entre tipos de mulheres. Aquelas tidas como “públicas”, as quais se misturavam com o caos urbano de classes e imigrantes nas cidades e, portanto, poderiam ser julgadas como não puras, já que estavam em público, e aquelas que tratavam de se proteger para não serem tomadas como públicas, ou seja, tinham sua circulação restringida.
Conforme as mulheres foram conquistando direitos e liberdades, mais presentes estiveram no espaço da cidade. No entanto, é questionável se elas poderiam sentir a liberdade, o anonimato ou a invisibilidade de um flâneur, ou viver a cidade como blasés, isso porque dificilmente a mulher passa despercebida ou escapa do olhar masculino, uma vez que seu corpo é lido socialmente como público se está no espaço público. Apesar disso, algumas autoras defendem a existência da flâneuse, inclusive no ensaio Street Haunting, de Virginia Woolf. Kern, contudo, lembra que dificilmente essa mulher que circula de forma blasé e aproveita a liberdade e o anonimato das grandes cidades seria reconhecida na imagem de uma mulher levando um carrinho de bebê ou com uma barriga de grávida, por exemplo. Isso reforça os desafios envolvidos com o corpo da mulher no espaço público.
Se a cidade não é o paraíso da liberdade para as mulheres, tampouco os subúrbios os são. Pelo contrário. A autora nos mostra como os subúrbios são uma barreira à liberdade feminina e foram construídos, no caso dos Estados Unidos, para produzir uma sociedade mais conservadora e anti-comunista depois da II Guerra Mundial. Dado que ali, naquela configuração sociogeográfica, as mulheres se voltariam ao seu papel de mães e esposas. E os subúrbios eram “perfeitos” para isso, com suas casas grandes e afastadas, provendo a infraestrutura adequada para a divisão sexual do trabalho de uma família nuclear heterossexual e branca; sendo, portanto, pouquíssimo adequado à maioria das famílias, sobretudo as da classe trabalhadora e as negras. Tal construção dos subúrbios ocorreu no mesmo período em que as populações negras iam para as cidades, de forma que os brancos, em resposta e para se diferenciar, corriam para as áreas suburbanas, em um movimento chamado de “white flight” – o que acabou fazendo com estas áreas ficassem segregadas e direcionadas às famílias brancas; alguns subúrbios ficariam conhecidos como “white only” (apenas brancos).
Dessa forma, os grandes centros ainda seriam mais adequados para as mulheres, sobretudo as que são mães solteiras, uma vez que, normalmente, as mulheres utilizam mais os serviços sociais localizados no centro e têm mais oportunidades de trabalho e atividades culturais em regiões centrais. Além disso, as ruas mais vazias dos subúrbios significariam menos segurança para elas.
Os transportes públicos constituem mais um sistema não pensado para as mulheres, principalmente em seu modelo de tarifa. Como as mulheres fazem mais viagens com mais trechos do que os homens – pois normalmente são responsáveis pela reprodução social – carregam filhos, passam no supermercado, na farmácia e levam outros membros da família ao médico -, acabam pagando mais pelo serviço do que os homens. O que, às vezes, é chamado de “pink tax”, que significa pagar mais pelos mesmos serviços que os homens.
Leslie Kern não deixa de perceber também que a mulher é uma peça importante nos processos de gentrificação, ou seja, pela ocupação de bairros das classes trabalhadoras e mais pobres por famílias e negócios de classe média. Quando vão para o mercado de trabalho e começam a ganhar maiores salários, as mulheres da classe média demandam serviços específicos e com isso elas acabam por participar do processo de gentrificação, que certamente não serve à maioria das mulheres da cidade. O mesmo acontece com a parentalidade ideal da classe média, vista como algo que exige também uma série de serviços e espaços específicos dessa classe e, por isso, incentivam a gentrificação. Exemplos desses serviços são cafés e restaurantes.
Esses processos, no entanto, não criam uma cidade que esteja preparada para o cuidado. Não há espaço para isso, não há espaço para compartilhar a reprodução social, ela é restrita às casas privadas. As grandes avenidas com trânsito tornam ainda mais difícil a circulação das crianças entre casa, escola e demais atividades.
Apesar disso, a pesquisadora canadense lembra que feministas materialistas fizeram projetos – e algumas vezes até chegaram a implementar – de casas e comunidades desenhadas para comportar a reprodução social de forma socializada. Essas feministas argumentavam que o trabalho doméstico e de cuidado com as crianças deveria ser incorporado em novos arranjos espaciais para facilitar a entrada das mulheres no mercado de trabalho em equidade com os homens e para favorecer seu desenvolvimento intelectual.
Vale a referência também à analogia entre a cidade dos arranha-céus e as diversas construções fálicas feitas ao longo da história. Kern recorre a algumas reflexões de Dolores Hayden. Para Hayden, a fantasia fálica do arranha-céu esconderia, na verdade, a violência do capitalismo, que mata operários da construção e aumenta riscos de estupros e incêndios, de forma que a verticalização seria um ícone do poder por meio da figuração do “caráter masculino do capital”, como define Liz Bondi.
A autora passa ainda por temas como direito à cidade, protestos citadinos, espaços queer, interseccionalidade e violência na cidade e acaba o livro chamando a atenção para possibilidades de uso dos espaços urbanos que já temos para construir uma cidade menos normativa. Até porque, a cidade feminista não seria um plano para botar tudo abaixo e começar do zero e nem para voltar atrás, aos “velhos tempos”, quando parecia haver mais harmonia nas cidades – o que escondia, em realidade, a violência sofrida por grupos marginalizados, como nos lembra a pesquisadora canadense em uma crítica a Jane Jacobs. O primeiro passo para uma cidade feminista seria vencer a violência contra as mulheres sem que isso implique em mais violência contra outros grupos, já que vivemos num contexto de militarização e vigilância.
Diversos grupos têm reivindicado uma sociedade menos machista, racista, sexista e colonialista. Perceber como as cidades são construídas para sustentar uma forma particular de sociedade nos permite pensar em novas possibilidades para elas, a partir mesmo do que já temos.
Algumas referências mencionadas pela autora para quem quiser se aprofundar no assunto:
BONDI, Liz. Gender Symbols and Urban Landscapes. Progress in Human Geography, v.16, n.2, p.157-170, 1992.
EICHLER, Margrit (ed.). Change of Plans: Towards a Non-sexist Sustainable City. Toronto: Garamond Press, 1995.
HAYDEN, Dolores. The Grand Domestic Revolution: a History of Feminist Designs for American Homes Neighborhoods, and Cities. Cambridge: MIT Press, 1982.
HAYDEN, Dolores. Skyscraper Seduction, Skyscraper Rape. Heresies, v.1, n.2, p.108-115, May 1977.
PRATT, Geraldine. Families Apart: Migrant Mothers and the Conflicts of Labor and Love. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.
WEKERLE, Gerda. A Woman’s Place is in the City. Antipode, v.16, n.3, p.11-20, 1984.
KERN, Leslie. Feminist City: Claiming Space in a Man-Made World. Verso, 2020.
