
Ato que reuniu mais de um milhão de pessoas no Dia Internacional das Mulheres em Santiago, Chile, em 2019. Imagem: Coordinadora 8M.
Texto originalmente publicado como introdução ao dossiê “Against the Day: The New Feminist Internacionale”, na revista South Atlantic Quarterly (Duke University Press, 2020). Tradução de Giovanna Henrique Marcelino.
Verónica Gago e Marta Malo
Uma nova era do movimento feminista já foi estabelecida. Estamos vivendo nela. A organização das greves internacionais de mulheres, lésbicas, pessoas trans e travestis desde 2017 marcou uma virada na escala do movimento e na conceituação e constelação de lutas que se consideram feministas. É esta tripla dimensão do movimento (multiplicidade de lutas, escala geográfica e gramática comum) que produziu, com grande eficácia política, análises e práticas concretas que se opõem aos modos predatórios da atual fase do capitalismo patriarcal e colonial.
A greve efetivamente convocou uma série de conflitos e fomentou revoltas que a transformaram em um processo político de longo prazo. A característica mais saliente desse ciclo feminista é a forma como ele combina tamanho massivo e radicalidade. Estas são duas características que geralmente não ocorrem simultaneamente, mas o movimento feminista tem conseguido aproximá-las. Tal força é também o que explica a virulenta contra-ofensiva militar, econômica e fundamentalista religiosa que surgiu em resposta à capacidade concreta do feminismo de desafiar simultaneamente a divisão sexual do trabalho tornada ainda mais dura pela precariedade, as ordens de gênero que a estruturam, e as respostas reacionárias ao trabalho e à insegurança existencial.
Um novo internacionalismo
A maré feminista que surgiu a partir da América Latina e que atualmente está tomando o mundo não pode ser entendida em termos de ondas, com começo e fim, e sua cronologia e temporalidade não podem se limitar a um feminismo eurocêntrico focado na Europa e na América do Norte. A maré, antes, refere-se ao movimento de uma massa aquática composta por múltiplas correntes subterrâneas, fluindo simultaneamente em várias direções, formando um imaginário de movimentos como uma multiplicidade. Essa maré abalou as geografias e as formas de fazer feminismo, de nomear a rebelião aqui e ali, e de determinar quais práticas de desobediência importam e valem como tais. Nesse sentido, ela abalou tudo, inclusive os modos de historicizar e construir genealogias, com uma marca anticolonial radical. As metáforas aquáticas, entretanto, propõem uma linhagem estranha e interessante. Nesse impulso, o “sonho irônico de uma linguagem comum” – a linguagem dos manifestos a que Donna Haraway recorreu há algum tempo – encontra uma nova vitalidade composta de situações específicas, cenas cotidianas e enormes mobilizações que traçam uma nova cartografia internacionalista.
A transformação e a importância do movimento feminista atual podem ser confirmadas e descritas na forma como ele, com toda a sua heterogeneidade, teceu (e continua a tecer) um campo global de intervenção, ressonância e coordenação. Estamos falando de um transnacionalismo já existente. Não é um programa para o futuro, a ser pensado e construído como uma etapa evolutiva do movimento, mas, sim, uma dimensão que está presente desde o seu início e que tem se tornado mais densa e rica a cada impulso sucessivo. Pode-se dizer que o feminismo existe de forma transnacional desde o primeiro grito de “Ni Una Menos”, quando a convocação para uma greve feminista começou a viralizar, ignorando as fronteiras nacionais.
Como esse novo internacionalismo foi construído e ganhou consistência? Com que histórias se entrelaça e quais reinventa? Em que se baseia sua força? Queremos propor algumas características a partir dessas questões.
1) É um internacionalismo que vem dos países do Sul Global, especialmente da América Latina, renomeada como Abya Yala. É um internacionalismo que desafia o imaginário geográfico e organizacional porque é composto por circuitos transfronteiriços de trabalhadoras migrantes, experiências comunitárias que historicamente desobedeceram aos Estados-Nação e que hoje confrontam a recolonização do continente, e espaços domésticos que resistem ao seu enclausuramento e exploração silenciosa. Ele encontra inspiração nas lutas autônomas de Rojava e nas lutas comunitárias da Guatemala, nas lutas de estudantes endividados no Chile, dos trabalhadores uberizados no Equador, das camponesas no Paraguai e das mulheres afro-colombianas em Cauca, bem como daquelas que resistem ao fascismo na Turquia, Índia e Argélia. No entanto, em vez de focar nos países, queremos destacar os territórios em que esse feminismo cresce: territórios que historicamente não foram considerados transnacionais e não são considerados como produtivos nas contas nacionais. Estamos nos referindo a territórios domésticos, territórios indígenas, camponeses e comunitários, e aos territórios de trabalho precário, popular e de rua. Nesse sentido, o Sul não é apenas um conjunto de países; é também uma série de territorialidades que estão principalmente no Sul do planeta, mas que também migraram para outras regiões. Portanto, esta forma de feminismo transnacional também ocorre na aliança entre as colhedoras sazonais de morango, as mulheres marroquinas que trabalham na agricultura intensiva e os sindicatos da Andaluzia rural, como a Pastora Filligrana descreve neste dossiê.
2) Esse internacionalismo permite que o movimento feminista atualmente seja projetado em escala de massa, pois cria formas de coordenação que se tornam datas e encontros em todo o planeta, causando reverberações nas formas organizacionais, nos slogans comuns e nos tipos de protesto. É um movimento de duas partes. Por um lado, inclui a organização molecular, que não é nem espontaneísmo nem eventismo: duas noções que costumam ser utilizadas para evidenciar as características efêmeras e desarticuladas de um movimento. Ao contrário, redes muito diversas colaboram, coordenam e organizam juntas em escalas diferentes. Por outro lado, ocorre uma convergência de massa. As greves feministas são impensáveis sem o trabalho muito paciente de assembleias, reuniões e elaborações programáticas. Além disso, os mecanismos de assembleia da organização feminista são transferidos para sindicatos, coletivos de arte e organizações de migrantes, e até desafiam a estrutura dos partidos políticos na vida cotidiana. Assim, a greve como um processo político fornece um horizonte comum de organização e de investigação prática sobre as formas de vida e de exploração em territórios específicos, ao mesmo tempo que permite uma multiplicação contínua da forma assembleia que se torna transversal em diferentes espaços e produz um método concreto de compreensão de conflitos. O movimento prossegue ao fazer perguntas constantemente – Em que consiste a sua greve? Qual é a sua luta? O que nós fazemos? O que não fazemos? – que levam a um nível sem precedentes de comunicação expressa por meio de gritos de guerra, cantos e ações que se tornam “senhas” táticas, que são apropriadas, replicadas e reinventadas em todos os lugares. Desse modo, o transnacionalismo feminista se prolonga, consegue durar e ressoa em situações que não possuem conexão clara. Por exemplo, a caravana de migrantes discutida por Amarela Varela neste dossiê contém, tanto nas práticas que articula como na perspectiva da abordagem da autora, um processo que é um diagnóstico feminista das formas de trabalho, contra a vitimização como única posição subjetividade, e sobre a violência como força produtiva.
3) Assim, vemos um internacionalismo em ação que opera conectando lutas heterogêneas que sistematizam um diagnóstico e enfrentamento comuns. As lutas não se reconhecem por meio da vinculação a uma estrutura “maior” ou “externa”. O transnacionalismo que está proliferando é um método de conexão que tem sido capaz de vincular a violência sexista à despossessão causada por empreendimentos neoextrativistas que expropriam terras comunais, à militarização das cidades e ao avanço das igrejas como forma de moralizar vidas desobedientes. É também um método político que desafiou a escala global das finanças ao traçar a ligação entre a violência sexista e a exploração financeira por meio da dívida privada e do empobrecimento generalizado causado por medidas de ajuste estrutural. Como explica Luci Cavallero, esse método é responsável pela ressonância da convocatória feminista “Nós nos queremos vivas, livres e sem dívidas!” A dimensão transnacional não exige a abstração das lutas em prol de uma estratégia única (que, de certa forma, replicaria a lógica da abstração financeira), mas sim, exige a coordenação de uma força que transmite modos de compreensão, que se espalha através de imagens, que acumula práticas e organiza uma sensibilidade comum sobre o que experienciamos e entendemos como exploração, violência, neoliberalismo e racismo. O nível global que vivemos não é uma síntese distante que força nossas lutas a “saltar” para uma maior coordenação, mas antes, qualifica cada situação concreta. Esse transnacionalismo torna cada luta mais rica e complexa, sem ter que pagar o preço de abandonar suas raízes; as torna mais cosmopolitas, sem levar a uma desterritorialização que desvie a nossa proximidade. Essa forma de conexão cria uma onipresença prática: aquela sensação que se expressa quando gritamos “estamos em toda parte!”. A onipresença do movimento é sua verdadeira força. É o que imprime em cada espaço uma dinâmica organizacional, que repercute nos demais, amarrando escalas que vão desde pequenas reuniões de cinco pessoas a grandes manifestações de massa, desde assembleias recorrentes de bairros a coletivos que se reúnem para uma ação específica.
A forma como a atuação do Coletivo Chileno Las Tesis tem circulado em contextos muito diversos constitui um claro exemplo desse internacionalismo feminista que não é superestrutural, mas, antes, opera pela conexão e transversalidade de lutas e sensibilidades. É um roteiro simples, composto simultaneamente de texto, ritmo e movimento, que aponta para a imbricação da ordem de gênero, violência sexual, violência do Estado e instituições patriarcais. Ele viaja a grande velocidade, como uma imagem que pode ser incorporada e modificada nos mais variados contextos, que pode falar da particularidade de uma situação local (repressão estatal no Chile e Equador, violência da exploração do trabalho das trabalhadoras da limpeza no México ou das trabalhadoras domésticas em Madrid, a luta pela autodeterminação em Rojava e contra o fascismo do governo brasileiro). Ao mesmo tempo, pode produzir um internacionalismo a partir dos corpos porque “se mexeu como uma de nós, mexeu com todas!”. Isso é possível não só pela força da proposta, mas também pela existência de teias relacionais de escuta em inúmeras áreas do planeta, que são capazes e estão dispostas a se ativar a partir do que outras propõem. Campanhas como #cuéntalo, em que milhares de mulheres começaram a narrar suas histórias de violência e abuso sexual nas redes sociais, construindo uma memória coletiva da violência patriarcal, são um precedente. Porém, a performance de Las Tesis sai da superfície digital para se tornar um corpo comum em uma multiplicidade de espaços e o faz como uma voz coletiva. Não é apenas o texto escrito coletivamente, mas também a performatividade compartilhada que cria uma ruptura com a submissão generalizada, com toda a vitimização, e se torna presente como uma mensagem, no que poderia ser chamado de protesto global não planejado como uma espécie de corrida de revezamento, que, de fato, continua.
4) Esse transnacionalismo tem uma dimensão programática: ele combina aspectos “baseados na demanda” e aspectos revolucionários de uma maneira nova. Essas dinâmicas não são experimentadas como opostas ou apenas em disjunção (a oposição tradicional entre reforma e revolução). Vemos um feminismo de massa que abarca e ultrapassa as agendas, a composição e os formatos de leis e entidades que antes faziam a “política de gênero”, ao mesmo tempo em que propõe e radicaliza novas demandas. É um feminismo de massa que não tem medo de falar de revolução – não como teleologia, mas como um ato de insubordinação que já está presente em todos os lugares: nas ruas, nas casas, nos quartos. Ele resiste a ser encurralado em questões de “mulheres” ou “minorias”, como algo sempre lateral e que, portanto, pode ser adiado. Ele amplia, golpe a golpe e gesto a gesto, aquilo pelo qual podemos lutar e debater a partir de posições feministas. Sustenta os espaços comunais e forja uma nova gramática organizacional a partir das mulheres em situação de rua e das favelas, lutando contra a urbanização racista, classista e predatória, como conta Helena Silvestre neste dossiê em referência à experiência no Brasil. Ele intervém em conjunturas altamente complexas (a greve no Equador e o terrorismo de Estado do governo chileno, os debates sobre o extrativismo na Bolívia e Argentina, as denúncias de violência governamental feitas por feministas na Nicarágua e na Guatemala, o debate em torno da dívida interna em Porto Rico e na Espanha, a caracterização da precariedade na Itália e na França), conseguindo denunciar e tornar visíveis com eficácia as cenas mais duras da repressão estatal e complexificar o debate sobre a dívida, o desenvolvimento e a inclusão na “normalidade” neoliberal. Nesse sentido, fica claro como a persistência feminista dos últimos anos reconfigurou o antagonismo político.
Transversalidade feminista
O transnacionalismo feminista não se expressa apenas em momentos de mobilizações globais. Em vez disso, torna-se operacional em processos políticos que à primeira vista parecem ser “locais” ou “domésticos”. Isso porque nós quebramos aquela distinção política, espacial e epistemológica em que o doméstico carece de autoridade política e projeção planetária. Isso é claramente demonstrado nos textos deste dossiê. Na análise feminista da dívida e sua conversão em chave interpretativa de mobilização, na perspectiva da migração como um conjunto de lutas vitais em contextos de uma violência tripla (Estado, mercado e violência sexista), na ocupação de terras urbanas e suburbanas como uma disputa e produção do comum, e na reinvenção feminista da luta trabalhista por meio de novas escalas e formas de conflito “interseccionadas” que multiplicam feminismos a partir de situações concretas, configurando um mapa transversal.
Há, em cada uma dessas realidades, um espírito feminista transnacionalmente nutrido que possibilita entender o que está em jogo ali, ao mesmo tempo que permite inscrever esses territórios na disputa corpo a corpo contra as fronteiras da valorização do capital. Assim, ao integrar uma multiplicidade de conflitos, a dimensão de massa é redefinida por meio do que tem sido historicamente estigmatizado como práticas e conflitos “minoritários”. Com isso, a oposição entre minoria e maioria se desloca: a minoria ganha escala massiva como vetor de radicalização dentro de uma composição que não para de expandir. Assim, ela desafia a máquina neoliberal de reconhecimento das minorias e de pacificação da diferença. Essa transversalidade política se alimenta em diversos territórios em conflito e constrói um afeto comum para os problemas que tendem a ser vivenciados individualmente e um diagnóstico político para as violências que tendem a ser encapsuladas como domésticas. Isso dificulta uma certa ideia de solidariedade, que implica um certo grau de exterioridade que confirma um distanciamento em relação aos outros. Ao contrário, a transversalidade prioriza uma política de construção de proximidade e de alianças sem ignorar as diferenças históricas na intensidade dos conflitos.
Através dessa transversalidade, que continuamente vai além das questões e da agenda atribuídas e transborda para conectar aquilo que está compartimentado, o movimento feminista, em toda a sua heterogeneidade, se reapropria da totalidade de uma forma inédita. Slogans como “vamos transformar o todo” ou “queremos mudar tudo” são uma forma de redefinir o que compõe a totalidade, esse “tudo”, que não se sintetiza no poder do Estado, sem subestimar a possibilidade de direcionar demandas específicas ao Estado ou mesmo disputar seus recursos. Com sua insistência em “misturar tudo”, o feminismo foi capaz de produzir um diagnóstico prático da “complexidade” do capitalismo patriarcal e colonial contemporâneo a partir de lugares concretos. Assim, torna-se visível a complexidade da exploração e dominação sem cair na impotência ou no cinismo; ao contrário, demonstram-se e expandem-se as articulações subjetivas e cotidianas como um fator estratégico para enfrentar a violenta lógica de acumulação do capital. Em outras palavras, o movimento feminista atualizou, por meio de uma pedagogia popular feminista, nossa compreensão da relação orgânica entre a violência contra a mulher e os corpos feminizados e a acumulação de capital. Fez isso não apenas como análise teórica, mas também por meio de práticas de insubordinação.
Ao mesmo tempo, acrescentou uma nova torção à questão dos meios de produção: o que significa apropriar-se deles se hoje os meios de produção são, em grande medida, os meios de reprodução? Corpos e territórios, ou corpos-territórios, como espaços geradores de vida, de memória, de relações e de luta por sua autodeterminação, tornam-se questões centrais. Defender a vida não é mais defender a vida simples, como determinação puramente biológica, para que nossos corações continuem batendo a qualquer preço, mas sim defender formas de vida, como agenciamentos coletivos concretos, que exigem meios para (re)produzir-se. Assim, nas lutas em todas as fronteiras de penetração neoliberal, atravessadas pelo feminismo (da dívida interna à precarização, do neoextrativismo e suas “zonas de sacrifícios” à militarização, da criminalização das fronteiras à produção de “inimigos internos”), a questão da propriedade está em jogo e o antagonismo político é produzido a partir da revolução feminista.
No segundo semestre de 2019, a capacidade do movimento feminista transnacional de reconfigurar o antagonismo político deu uma nova guinada. No Chile, slogans e práticas da greve feminista foram implementadas a um nível de massa, como durante a greve geral plurinacional de outubro e novembro de 2019. Esse acúmulo de experiência conseguiu mudar a textura das lutas, suas formas organizacionais, suas fórmulas políticas e suas alianças históricas. Vemos isso escrito nos muros. Considere dois exemplos de slogans-senhas: “Eles nos devem uma vida”, como forma de inverter a dívida, quem deve a quem, escrito nos bancos do Chile, país dos Chicago Boys, com o maior nível de dívida per capita na região.
Diante do aumento do custo da vida cotidiana, ou seja, da extração de valor de cada momento da reprodução social, a desobediência financeira é proposta com o slogan-prática: #MassEvasion. Um segundo exemplo de grafite-síntese, “Porco, fascista, sua filha é feminista”, aponta para a profunda desestabilização do patriarcado à qual o fascismo contemporâneo está respondendo, é simultaneamente micropolítico e estrutural. Mas também acontece com a greve de outubro de 2019 no Equador: a dimensão reprodutiva da greve se dá não apenas nas práticas de arrecadação de enormes quantidades de alimentos e acolhimento de comunidades que chegam à capital de todo o país, mas também na organização de ações coletivas, pensando sobre a eficácia das marchas e melhorando as defesas contra a repressão. Além disso, o debate sobre o aborto atravessa as assembleias plurinacionais como nunca antes e está particularmente estabelecido na agenda local. Em cada um desses contextos, vemos a presença do movimento feminista em outros processos de luta e mobilização, que se realizam em termos práticos, bem como epistemológicos, políticos e sensíveis.
Desde a crise de 2008, a fim de sustentar seus modos de exploração e conter as implosões sociais em todos os territórios, o neoliberalismo tem precisado de uma aliança cada vez mais estreita com o fascismo e várias formas de fundamentalismo religioso, particularmente para reordenar a reprodução social em termos capitalistas, para recentrar uma ordem de gênero que está em crise, e reforçar as divisões entre o humano e o que é categorizado como menos humano (o feminizado, racializado e naturalizado) que sustentam a necropolítica. Muitas análises já previam um destino assustador: tanto o triunfo eleitoral de governos ultraconservadores em todo o planeta quanto o avanço do fascismo social no plano micropolítico. O feminismo transnacional apareceu como um jogador inesperado na mesa, ou melhor, chutando a mesa do pacto capitalista patriarcal. Veio reabrir o que parecia fechado e o fez com esta mistura de radicalidade e massividade, de força internacionalista e operação local, de conectividade e enraizamento, de totalidade e singularidade, que aqui tentamos descrever. Algumas vozes tentaram fazer um chamado à ordem para aqueles transfeminismos fugitivos e irreverentes, convidando-os a retornar às caixas delimitadas das “questões femininas”, distintas das questões econômicas, sindicais, financeiras e ecológicas. O que está em jogo hoje nas disputas pelos sentidos do feminismo não é a divisão de um movimento que sempre foi múltiplo e poliédrico. O que está em jogo é a capacidade de intervenção no ponto de sutura entre o neoliberalismo e o fascismo. É a própria potência feminista que está em jogo, que, como vimos, se reflete em sua constante superação, em seu desejo de mudar tudo.
