
Imagem: foto de manifestação das mulheres em fevereiro de 1917 em Petrogrado, na Rússia.
Beatriz Rodrigues Sanchez
O dia 8 de março é conhecido internacionalmente como o dia da mulher ou, em perspectivas mais inclusivas, das mulheres. Desde a década de 1970, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu essa data como um dia a ser comemorado por todas as nações. Todos os anos, neste dia, assiste-se à exaltação e à valorização da população feminina pelos meios de comunicação. Anúncios de publicidade destacam a beleza e delicadeza femininas. Nas empresas, as funcionárias recebem chocolates e outros mimos, muitas vezes produzidos e comercializados pela indústria de cosméticos. Maridos, filhos e namorados compram flores para presentear as mulheres da família. Aparentemente inofensivas, essas ações têm algo em comum: despolitizam a luta das mulheres e reforçam um certo tipo de feminilidade tradicional.
Estas iniciativas se tornam ainda mais preocupantes quando se inserem num contexto de fortalecimento do neoliberalismo em que vertentes do feminismo liberal questionam determinados aspectos relacionados aos estereótipos de gênero, a partir de um ponto de vista meramente culturalista, mas não apresentam uma análise estrutural das formas de dominação. Esse tipo de feminismo privilegia uma lógica de identidade narcisista, que reforça padrões de beleza baseados, majoritariamente, em mulheres brancas, heterossexuais e de classe média. Mesmo quando tenta romper com o machismo, o faz numa chave individualista, partindo da ideia de “empoderamento”. Além disso, esse tipo de feminismo reivindica que mais mulheres ocupem os cargos de liderança dentro das grandes corporações, mas não questiona o sistema capitalista que explora a mão de obra de mulheres pobres e negras que trabalham em condições precárias, muitas vezes limpando esses mesmos lugares. Entender como o racismo, o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado se articulam é tarefa fundamental dos feminismos que tenham como objetivo a emancipação de todas as mulheres, não somente de algumas (VERGÈS, 2020).
A vinculação entre essas diversas frentes de luta e a análise global das formas de dominação e exploração foram aspectos estruturantes da organização das mulheres proletárias responsáveis pela criação do 8 de março, no início do século XX. Assim, em oposição ao discurso despolitizado que tem se construído em torno da data e ao crescimento das pautas liberais dentro do feminismo, é importante resgatar a dimensão política radical do 8 de março, que estava presente desde sua origem.
Há exatos 111 anos, em 1910, a Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague, aprovou a proposta apresentada por Clara Zetkin, dirigente do movimento socialista alemão e uma das principais lideranças do movimento internacional de mulheres trabalhadoras, da declaração de um dia de luta pela libertação das mulheres (ÁLVAREZ GONZÁLEZ, 2010). A Conferência decidiu que todos os anos, em todos os países, seria comemorado na mesma data “O Dia das Mulheres”. Alguns anos mais tarde, em 1917, será com a Revolução Russa que o dia 8 de março ficará definitivamente marcado como o Dia Internacional das Mulheres.
Como afirma Alexandra Kollontai, figura central da Revolução Russa e pioneira dos estudos marxistas feministas, “em 1917, no dia 8 de março (23 de fevereiro segundo o antigo calendário russo), no Dia das Mulheres Trabalhadoras, elas saíram corajosamente às ruas de Petrogrado. Nesse dia, as mulheres russas ergueram a tocha da revolução proletária e incendiaram todo o mundo” (KOLLONTAI, 2010, p. 198). Foi, portanto, em homenagem à ação política das mulheres comunistas russas e seu papel na revolução que o dia foi estabelecido como parte do calendário mundial para além das fronteiras soviéticas.
O trecho de Kollontai transcrito acima revela o caráter proletário e transformador que estava na origem do 8 de março. Desde o início da sua criação, essa data vinculava a luta pela libertação das mulheres com a luta pela transformação total da sociedade. Apesar das sucessivas e insistentes tentativas de despolitização da data e de confinamento dos estereótipos de feminilidade, parte dos movimentos feministas do século XXI continuam apresentando uma crítica radical às estruturas de opressão. Esses movimentos recentes se distanciam das vertentes liberais do feminismo. Exemplos não faltam: nos EUA, as mulheres negras estiveram na liderança do movimento Black Lives Matter, que lutou pelo direito mais básico de todos que é o direito à vida. No Chile, as feministas denunciaram o machismo institucional do Estado ao exclamarem, em uma performance: o violador é você! Como consequência deste movimento e de outros levantes ocorridos, o país iniciou um processo de construção de uma nova constituição que apague os resquícios da ditadura de Pinochet. Na Argentina, a bem-sucedida campanha pela legalização do aborto levou milhares de mulheres com lenços verdes às ruas, enquadrando a pauta dos direitos reprodutivos como uma questão de interesse público. Na Bolívia, as mulheres indígenas foram protagonistas dos protestos que reverteram o golpe de Estado e levaram a esquerda mais uma vez ao poder. Todos esses recentes levantes revelam que o desejo de transformar tudo, como diria Gago (2020), continua presente nos anseios de algumas feministas nos dias de hoje.
Neste momento, em que estamos vivendo a tragédia da covid-19, em que milhares de pessoas morrem a cada dia no mundo e, no Brasil, em especial, por conta de uma estratégia institucional e genocida do governo Bolsonaro de propagação do vírus, são as mulheres que estão mais uma vez na linha de frente. Elas são as protagonistas do combate à pandemia, seja como profissionais da saúde, cuidadoras, líderes comunitárias ou chefes de governo. Ao mesmo tempo, de acordo com matéria publicada pela revista Gênero e Número,1 são as mulheres, pessoas trans, negras e indígenas as mais expostas aos impactos negativos da covid-19.
Neste dia 08 de março de 2021, resgatemos a potência transformadora desta data, levando adiante a luta daquelas que nos antecederam. Que a chama da revolução não se apague.
Feliz dia internacional de luta das mulheres!
Nota
1 Matéria disponível em: http://www.generonumero.media/lgbt-coronavirus/
Referências bibliográficas
ÁLVAREZ GONZÁLEZ, Ana Isabel. As origens e a comemoração do dia internacional das mulheres. Trad. Alessandra Ceregati. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
GAGO, Verónica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. Trad. Igor Peres. São Paulo: Elefante, 2020.
KOLLONTAI, Alexandra. Dia Internacional das Mulheres. In: As origens e a comemoração do dia internacional das mulheres. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

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