
Por Cecilia Farias, Letícia Bergamini e Lia Urbini*
O ano é 1880. Karl Marx, Friedrich Engels, Leo Hartmann, August Bebel e Eduard Bernstein estão em um salão, ao norte de Londres, para um evento em prol dos comunardos. Em certo momento da noite, uma jovem de 25 anos sobe ao palco do salão para recitar O Flautista de Hamelin, escrito pelo poeta Robert Browning em 1842. Ao fim da apresentação, a atriz é recebida com palmas calorosas. Naquele momento, ela se certificou de que seu lugar era nos palcos.
Eleanor Marx foi uma das poucas figuras da história capaz de tratar, com maestria, a política enquanto arte. Em linhas gerais, esta foi a maneira com a qual ela conduziu diversos aspectos da sua vida; sempre apaixonada, curiosa, inquieta. Tussy, como foi apelidada na infância, se descobriu artista antes de se descobrir política. Os palcos do teatro foram seu ensaio para os futuros discursos na Federação Socialista, no Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Gás e na Internacional. Suas habilidades comunicativas nos recitais alicerçaram sua desenvoltura nos discursos públicos.
Nascida em 16 de janeiro de 1855, no Soho, em Londres, Tussy foi criada em um ambiente muito contrastante. De um lado, dificuldades financeiras da família, uma casa caindo aos pedaços, tentativas fracassadas de educação formal, miséria e perseguição política. Do outro, uma coleção de livros de Shakespeare, rascunhos de ensaios políticos e econômicos, uma polifonia linguística (a família transitava pelo alemão, francês, inglês, holandês e iídiche) e cultural. Ela acompanhou, do colo do pai, a concepção de O capital. Passou a infância e a juventude rodeada pelos livros dos pais e dos que ganhava de seu cunhado, Paul Lafargue (marido de sua irmã Laura). Desde muito cedo, via sua casa ser a sede de encontros e debates para a organização da Primeira Internacional. E, com o passar do tempo, ela deixou de assistir e passou a fazer parte disso tudo, seja como tradutora e mediadora dos debates da Internacional, seja como estrategista política, agitadora e criadora de pontes entre a classe trabalhadora organizada e os ideais revolucionários.
Todas essas nuances plurais da vida, atuação e obra de Tussy estão retratadas no livro de Rachel Holmes, Eleanor Marx: uma vida, a ser lançado pela editora Expressão Popular no primeiro semestre deste ano. No livro, a biógrafa estimula leitoras e leitores a enxergar Tussy para além do olhar cristalizado de alguém que carregou o fantasma do legado de seu pai durante a vida, até sucumbir. Muito pelo contrário: a obra mostra como ela subverteu ideias e estendeu o pensamento socialista, muitas vezes de maneira solitária (devido à sua condição de mulher), mas sempre com um rigor que priorizava a ação coletiva.
A importância de Eleanor Marx para a construção do socialismo transcende as fronteiras teóricas e historiográficas. Ela foi, de fato, a mulher que trouxe o debate sobre a opressão das mulheres para o centro do socialismo. Construindo ao lado de nomes como Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo, foi a responsável por abrir os caminhos para pensar as estruturas de uma outra sociedade que compreendesse a origem e as consequências da opressão da mulher enquanto classe subjugada.
“Ela começou a pensar no impacto diferente da reprodução em mulheres e homens. Refletiu sobre a vida de sua mãe, suas irmãs, amigas e as mulheres que conhecera por meio de seu ativismo, tanto na Inglaterra (através do movimento operário) quanto no exterior (através da Internacional). Lendo bastante, Tussy começou a compilar notas de pesquisa que refletiam amplamente sobre a posição das mulheres nas sociedades humanas. Explorou como as filosofias políticas e econômicas abordavam a desigualdade sexual – se é que o fizeram – e começou a ordenar sistematicamente seus pensamentos e averiguações sobre a questão da mulher.
Voltou aos textos fundadores do socialismo para revisar o que eles tinham a dizer sobre a opressão sexual e a igualdade das mulheres, incluindo o trabalho pioneiro de Charles Fourier, que argumentou que ‘a extensão dos privilégios das mulheres é a causa fundamental de todo o progresso social’. Gradual e completamente, Eleanor estava construindo os fundamentos de um trabalho de filosofia política feminista.”
Rachel Holmes
Em seu trabalho mais conhecido, A Questão da Mulher: de um ponto de vista socialista (1886), coescrito por ela e seu marido, Edward Aveling, Eleanor provoca os leitores e as leitoras a pensarem em um socialismo feito por e para mulheres, passando por reflexões acerca de temas como o casamento, a prostituição, o divórcio e a monogamia. Apesar dos 135 anos que separam a publicação da obra e o pensamento socialista atual, muitas das perguntas de Eleanor ainda não foram respondidas; outras parecem ainda ser ignoradas. Uma tradução desse artigo, originalmente publicado na Westminster Review em 1886, foi feita por Helena Barbosa, Maíra “Mee” Silva e Maria Teresa Mhereb está disponível aqui no Blog.
Além de sua biografia, as Obras completas de Eleanor Marx também foram traduzidas e serão lançadas em breve aqui no Brasil pela Editora Aetia. Foi uma feliz coincidência que, enquanto finalizávamos a tradução de sua biografia, em paralelo suas publicações também eram vertidas para o português. Talvez não exatamente coincidência, mas sim o espírito desse momento.
A atualidade de seu pensamento e postura permanece radical no século XXI. E isso só reforça a necessidade do resgate e da valorização das mulheres que construíram o caminho para um socialismo que também priorize toda a classe de mulheres. Muitas das contradições e dos questionamentos levantados na atualidade já foram pensados por mulheres como Eleanor Marx. Resgatar sua vida, obra e memória é um exercício político e dialético; é um lembrete corajoso de que a luta e a organização das mulheres serão infinitas enquanto não destruirmos por completo as estruturas que insistem em nos manter longe dos palcos, dos palanques, da política e da construção de um mundo justo.
Eleanor Marx, presente!
Confira a tradução do A Questão da Mulher: de um ponto de vista socialista aqui!
* Cecilia Farias é linguista, revisora e tradutora. Atualmente, doutoranda em linguística, sua pesquisa se volta a realidades multilíngues, línguas minorizadas e as relações sociocognitivas ligadas à linguagem. Faz o Babel Podcast, pesquisa no LLICC-USP (Laboratório Linguagem, Interação, Língua, Cultura e Cognição) e traduz no Coletivo Sycorax.
Letícia Bergamini é tradutora, revisora, professora de inglês, musicista e criadora do projeto traduções radicais. Atualmente, colabora como tradutora para edição brasileira da revista Jacobin.
Lia Urbini é revisora de textos, tradutora, professora e cientista social.

[…] aqui a apresentação de Cecilia Farias, Letícia Bergamini e Lia Urbini para esta tradução inédita […]
CurtirCurtir