o queer unidimensional

Imagem: Polity Books

Resenha de One-Dimensional Queer, de Roderick A. Ferguson

Alexandre Martins*

Em “One-Dimensional Queer”, o livro mais recente de Roderick Ferguson, sociólogo estadunidense e teórico marxista negro queer[i], somos apresentados a uma análise histórica crítica ao suposto “progresso” de direitos LGBTs e à inclusão de dissidentes sexuais e de gênero no capitalismo neoliberal por meio de uma sofisticada interlocução com diferentes tradições teóricas, em especial, com teóricos críticos frankfurtianos e teóricos queer of color[ii] e marxistas. Se, em Aberrations in Black[iii], Ferguson propôs uma “queer of color critique” [“crítica queer não branca”], isto é, uma teoria crítica queer fundada em uma crítica racial e de classe, em seu último livro, o sociólogo articula essa proposta teórica com uma história e uma teoria da liberação gay[iv] estadunidense que busca, ao mesmo tempo, compreendê-la como multidimensional e analisar como forças políticas e econômicas produziram o disciplinamento de suas origens interseccionais e a normalização das lutas sexuais como apartadas de críticas raciais, de gênero, ao capitalismo e ao colonialismo.

Como marca o título de seu livro, Ferguson parte das reflexões de Marcuse para expor o processo no qual a política queer se tornou unidimensional, isto é, como passou a ser hegemonicamente integrada à ordem social capitalista e como foram sendo negadas as alternativas políticas e reduzidos os horizontes de transformação social. Para tanto, volta-se à história da liberação gay nos Estados Unidos contrapondo-se à narrativa hegemônica de que seu evento fundador, a revolta de Stonewall (1969), teria sido um evento de pauta única (“single-issue”) contra a opressão cis-heterossexista. Enquadrando Stonewall como tributário de uma multiplicidade de movimentos políticos que lhe eram contemporâneos, como as lutas dos Panteras Negras e dos Young Lords pela independência de Porto Rico, essa obra apresenta os primeiros anos da liberação gay como produto de lutas múltiplas vividas como simultâneas e inseparáveis – assim como são inseparáveis as formas de violência contra dissidentes sexuais e de gênero das violências raciais e de classe, tanto na análise queer of color quanto no modo como são vividas no cotidiano.

Em diálogo com Audre Lorde, Ferguson recusa a noção liberal da diferença como agonística e fonte de separação para apostar na diferença como ponto de conexão e associação para a organização política. Contrapondo-se teórica e politicamente à celebração dos caminhos contemporâneos dos movimentos LGBTs que se apresentam como se não houvesse alternativa política à sua atual configuração, a teoria de Ferguson se enraíza nas experiências históricas de produção de coletividades de dissidentes sexuais e de gênero negras, latinas, asiáticas, chicanas atuantes nos primeiros anos das lutas pela liberação gay. Coletivos como Gay Liberation Front (fundado em 1969), STAR (Street Transvestite Action Revolutionaries) (1971), Third World Gay Revolution (1970), Gay Latino Alliance (1975), DYKETACTICS! (1975), Combahee River Collective (1974) recusavam tanto a integração à sociedade unidimensional quanto a separabilidade das mobilizações contra a opressão cis-heterossexista das lutas anticapitalistas, anticoloniais, feministas, antirracistas e anticarcerárias. Ao narrar as histórias políticas dessas coletividades, Ferguson oferece a quem o lê evidências históricas de políticas de coalizão interseccionais e multidimensionais capazes de iluminar outras formas de produção de vida e política no presente.

No processo histórico de regulação e supressão de tais formas de engajamento queer, confrontadas desde 1969 com formas liberais de políticas gays e lésbicas, as políticas queer passaram a ser estreitadas ao “possível” dentro da ordem econômica e política capitalista. Ferguson argumenta que esse processo ocorreu por meio da separação dessas lutas de políticas de coalizão, da renúncia a demandas anticapitalistas e antirracistas e da construção de gays e lésbicas como respeitáveis e palatáveis. Integráveis ao Estado e ao mercado, a versão unidimensional de políticas queer teve como corolários tanto os direitos gays quanto o capital gay, os quais, sob uma aparência de “progresso”, são, com efeito, produtos de uma integração constituída em termos de raça e classe: a figura consistente com o “progresso” do multiculturalismo neoliberal tem sido o gay cisgênero branco e de classe média respeitável.

As reivindicações hegemônicas de direitos LGBTs nos EUA – o casamento, a participação nas forças armadas e a criminalização da LGBTfobia – emergem na teoria de Ferguson como efeito da unidimensionalidade dessas lutas e produto de uma concepção de sexualidade que a separa de raça e classe e da crítica ao capitalismo neoliberal. Partindo da conceituação de Harvey, Ferguson associa o neoliberalismo à redistribuição ascente de recursos e à precarização das condições de vida em um processo no qual se produz uma visibilidade maior de dissidentes sexuais e de gênero por meio da integração de determinados LGBTs a instituições neoliberais enquanto se acentua a precarização e se renovam os processos de criminalização e violência de queers não brancos e das classes mais precarizadas.

O argumento de Ferguson vai ao encontro de uma tradição de pensamento dissidente sexual e de gênero que desde os anos 1970 tem se recusado a pensar sexualidade de modo dissociado de raça e classe, da qual são fundamentais as obras de Audre Lorde e Cherríe Moraga. Sua teoria crítica da unidimensionalidade se embasa nas potentes interlocuções costuradas com autores queer que desde os anos 1990 têm tecido críticas contundentes ao capitalismo neoliberal, seja teóricos queer marxistas e/ou materialistas, como Lisa Duggan, John D’Emilio e Merle Woo; teóricos queer of color, como Chandan Reddy e Martin Manalansan; seja autores trans críticos, como Reina Gossett, Che Gossett, Dean Spade e Jack Halberstam.

Da obra de Roderick Ferguson e das pontes teóricas que constrói, lampejam momentos da história queer com potencial disruptivo fundamental em nosso presente histórico, como nos ensina a tradição materialista histórica benjaminiana. A crítica de Ferguson ao “progresso” que avança por meio do estreitamento das políticas de sexualidade se enraíza, ademais, na tradição queer de crítica aos processos de normalização. O marxismo queer de Roderick Ferguson aponta, em especial, para a potência de lutas interseccionais e multidimensionais e apresenta uma outra história da liberação gay enquanto uma aposta em nossa agência como seres históricos de nos apoiarmos na acumulação histórica de formas de luta alternativas às unidimensionais para nossas lutas no presente.

“O Queer Unidimensional” é parte de um conjunto de obras contemporâneas que, enraizadas em teorias simultaneamente anticis-heterossexistas, anticapitalistas, antirracistas e anticoloniais, diagnosticam a urgência de se puxar o freio do progresso unidimensional dos movimentos sociais de “pauta única” para que se pare o trem do “multiculturalismo arco-íris” integrado ao capitalismo neoliberal. O marxismo queer e a crítica queer of color de Roderick Ferguson são, com efeito, um chamado não só a formas de produção teórica que não separem raça, classe e sexualidade, mas a uma recusa teórica e política à unidimensionalidade. Em nome de teorias e políticas queers multidimensionais, anticapitalistas e antirracistas.

FERGUSON, Roderick A. One-Dimensional Queer. Cambridge: Polity Press, 2019.

* Alexandre Martins é mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo. É bacharel em Ciências Sociais pela mesma Universidade. E-mail: alexandrenmartinss@gmail.com.


[i] Optamos por manter o termo “queer” em inglês, reconhecendo suas múltiplas traduções possíveis, como cuir, kuir ou transviado e as várias apropriações possíveis de insultos locais às dissidentes sexuais e de gênero – como viado, sapatão, travesti. O termo “queer” se remete tanto ao conjunto de dissidentes sexuais e de gênero quanto a uma forma antinormativa de política e teoria – “queer” não se refere, portanto, apenas às sexualidades e aos gêneros dissidentes, mas às práticas e aos sujeitos construídos como anormais, dissidentes, abjetos.

[ii] Quando nos referimos ao campo teórico, mantivemos o original “queer of color”, enquanto ao se referir às coletividades “of color” optamos por sua tradução como “não branco”. A expressão “of colour”/ “of color” opera como guarda-chuva que designa em inglês as diversas coletividades na sociedade estadunidense – negras, latinas, chicanas, árabes, asiáticas, indígenas – que foram historicamente racializadas como distintas dos brancos. Traduzimos essa expressão guarda-chuva como “não brancos”, reconhecendo as limitações de manter a centralidade do “branco” para nomear outras coletividades, mas adotando-a como uma forma de marcar a racialidade que opera distinguindo historicamente grupos construídos como brancos das coletividades construídas como não brancas.

[iii] FERGUSON, Roderick A. Aberrations in black: Toward a queer of color critique. University of Minnesota Press, 2004.

[iv] Liberação gay e liberação queer são as denominações mais frequentes desse período histórico de fins dos anos 1960 e meados dos anos 1970 em que as identidades sexuais e de gênero não normativas não se articulavam como em nosso presente histórico – razão pela qual seria anacrônico escrever em termos de liberação LGBTQIA.

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