
Resenha de Beyond the periphery of the skin. Rethinking, Remaking, and Reclaiming the Body in Contemporary Capitalism, de Silvia Federici
Bruna Della Torre
Ir além da superfície da pele, […] uma continuidade mágica com outros organismos vivos que habitam a terra: os corpos humanos e não humanos, as árvores, os rios, o mar, as estrelas. Essa é a imagem do corpo que reúne o que o capitalismo dividiu, um corpo não mais constituído como a mônada de Leibniz, sem janelas e sem portas, mas se movimentando, ao contrário, em harmonia com o cosmos, num mundo no qual a diversidade é um bem de todos e uma base comum ao invés de uma fonte de divisão e antagonismos.
Retomar e transformar aquilo que o capitalismo cercou, despossuiu, alienou; talvez seja possível dizer que é este o eixo do trabalho teórico e político de Silvia Federici. Em Calibã e a bruxa, Federici reescreve – em diálogo crítico com Marx – a história da acumulação primitiva no capitalismo e mostra como não foram apenas os territórios que foram cercados, mas também o corpo feminino, expropriado das mulheres por meio da caças às bruxas, da destruição dos saberes tradicionais contraceptivos, do controle da reprodução, entre outras múltiplas violências. Um processo de acumulação contínuo e permanente, que também tem como um de seus eixos a colonização. A história do capitalismo não é só a história da expropriação dos trabalhadores diretos, da expulsão da população do campo, da conversão dos meios de vida desses trabalhadores em capital, mas da formação de sujeitos generificados, racializados sobre os quais recai o fardo do trabalho invisível da reprodução. Essa história é, portanto, também a história desses corpos.
Se a acumulação originária é criação e recriação constante das condições de existência do capital, um processo social construído à base de sangue e de lágrimas, como pensar a questão do corpo e o lugar do corpo feminino nos dias atuais? Beyond the periphery of the skin foi escrito a partir de três palestras proferidas por Federici no California Institute of Integral Studies sobre o significado do corpo e da política do corpo para o movimento feminista da década de 1970 e para seu próprio trabalho teórico. O livro consiste, na verdade, em uma reflexão a partir das perguntas que foram feitas a Federici nessas palestras. Segundo a autora, quatro perguntas guiam o livro: “primeiramente, ‘mulheres’ ainda é uma categoria necessária para a política feminista, considerando a diversidade de histórias e experiências incluídas nesse rótulo, ou deveríamos descartá-la, como propuseram que o fizéssemos Butler e outras teóricas pós-estruturalistas? Falando mais amplamente, deveríamos rejeitar qualquer política de identidade como inevitavelmente fictícia e optar por unidades construídas unicamente por convergências de oposição? Como devemos avaliar as novas tecnologias que prometem reestruturar nossa composição física e refazer nossos corpos de formas a melhor atender nossos desejos? Essas tecnologias aumentam nosso controle sobre nossos corpos ou transformam nossos corpos em objetos de experimentação e fonte de lucro a serviço do mercado e da profissão da medicina?” (p. 2).
Em primeiro lugar, trata-se da retomada do diálogo do marxismo feminista com Judith Butler e com o feminismo pós-estruturalista. Há também um diálogo implícito com o movimento e com a teoria queer. Federici está preocupada em refletir sobre algumas das consequências políticas da concepção do gênero a partir das práticas discursivas e, nesse sentido, recusa a ideia de gênero como produto do discurso, ainda que esse último seja compreendido num sentido alargado, como queria Foucault. Sua crítica se dirige principalmente à noção de “performance” de Butler; ao conferir “agência” à construção do gênero, o conceito levaria – ainda que não de forma proposital – a uma ideia de consentimento com a submissão. Ademais, esse conceito implicaria numa recusa a pensar o gênero a partir de dinâmicas sociais mais amplas. Federici propõe, então, que voltemos nossos olhos para as instituições a partir das quais o gênero é produzido: a divisão do trabalho, a organização da família e da sexualidade, as disciplinas impostas pela escola, igreja, etc. Embora reconheça os grandes avanços que a teoria de Butler fez no âmbito da desnaturalização do gênero, Federici insiste que um foco excessivo na performance não permite criticarmos as instituições pelas quais as relações de gênero se perpetuam, como a constante desvalorização da esfera da reprodução. Ou seja, a ênfase na batalha contra o poder que se inscreve no corpo, portanto, muitas vezes em nível individual, perderia de vista processos sociais e históricos mais amplos e estruturais de produção do gênero e de sujeição das mulheres.
Além disso, Federici discute uma questão que está na ordem do dia e que tem gerado muitos debates no Brasil atualmente: uma política feminista revolucionária deve abandonar a identidade? Seria possível construir um movimento feminista pós-identitário? Segundo a autora, se descartamos “mulheres” (atenção ao plural) como categoria analítica e política, então o feminismo deve também acabar – já que não há um solo comum de experiência da opressão do qual poderíamos partir. Esse é, aliás, um dilema também presente no marxismo. É possível um movimento comunista sem identidade de classe? Isso não requer, diz Federici, uma concepção fechada e essencialista do que é ser mulher. O feminismo sempre recusou o fechamento da categoria “mulheres”, ele sempre se constituiu como revolta contra a definição das mulheres a partir da natureza, contra a sua redução a meros “corpos” a serviço dos homens, como “uma revolta contra a assunção de que o melhor que podemos esperar da vida é ser empregadas domésticas e sexuais dos homens e produtoras de trabalhadores e soldados para o Estado” (p. 25). Federici defende a importância da identidade para o reconhecimento das mulheres como um sujeito político, mesmo que essa identidade seja o tempo todo redefinida, renegociada e alargada, isto é, como construto social sempre em disputa, mas que permite a formação de um coletivo – em associação, conforme demonstra em outros livros, com os sujeitos racializados e generificados da reprodução.
A teoria da “performance” de Butler também apresentaria problemas para pensarmos a questão do corpo. O título de Federici brinca implicitamente com a ideia foucaultiana, presente também na teoria de Butler, de que “a verdade está na superfície” e que implicaria, segundo Federici, na ideia de que nossa constituição fisiológica é de pouca relevância para nossa experiência social. Isso não significa, é claro, defender uma perspectiva biologizante da relação sexo/gênero, mas mostrar que a relação socialmente construída entre corpo e gênero vai além da superfície da performance, o que, afirma Federici, atestam homens e mulheres trans, que passam por transformações profundas para mudar de gênero. Não se trata aqui de condenar as pessoas que passam pela transição, mas de ressaltar uma materialidade do gênero que a teoria da performance ignoraria. Nesse sentido, um outro eixo do livro se constrói em torno da crítica da tecnologia e da ciência médica, em diálogo com o movimento queer e com uma parte do feminismo radical. Federici debate com o movimento queer que celebra as tecnologias médicas e corporais como principal saída para as questões de gênero e que, segundo Federici, apresenta-se como uma consequência política da abordagem pós-estruturalista do gênero como performance.
Nesse livro, Federici retoma uma tradição da teoria feminista de análise crítica de como a medicina e a psicanálise cumpriram um papel fundamental no capitalismo referente ao disciplinamento e à submissão das mulheres tanto ao trabalho industrial, quanto ao trabalho de reprodução, tanto na fábrica quanto no lar, também uma fábrica da classe trabalhadora. As novas tecnologias de melhoramento genético, clonagem, instalação de chips no corpo, etc., conforme o argumento do livro, são tecnologias que ameaçam nos submeter ainda mais ao jugo do capital.
Federici retoma Calibã e a bruxa em suas análises sobre a medicina como uma instituição que historicamente colaborou com o capital e com a sujeição das mulheres ao despossuí-las de seus corpos, ao expropriá-las de seus saberes tradicionais, do controle da sala de parto, etc. Esta seria, então, a grande instituição do controle dos corpos das mulheres. Atualmente, no entanto, diz Federici, os avanços tecnológicos na medicina, como a possibilidade de reconstrução dos corpos, são vendidos para nós como fonte de empoderamento e autodeterminação, apesar de que todas as tecnologias implicadas nesse processo são implantadas pelo alto.
Nesse âmbito, o livro adverte para os limites das tecnologias médicas como meios da superação da dominação de gênero. Federici faz uma crítica ao “Manifesto ciborgue” de Donna Haraway e à ideia de Shulamith Firestone de que as mulheres deveriam ser liberadas da procriação por meio das tecnologias reprodutivas. Ambas comemoram essas inovações técnicas, de acordo com Federici, porque atribuem a origem da opressão das mulheres à sua capacidade de engravidar e dar à luz. Ao fazerem isso, essas feministas recolocariam o problema do “destino biológico das mulheres”, como se não fosse a inscrição do social no corpo que causasse a opressão das mulheres, mas a capacidade reprodutiva em si. É como se a tecnologia capitalista fosse capaz de livrar as mulheres da opressão, afirma Federici, ao passo que a teoria da reprodução social é capaz de mostrar como a misoginia e a generificação é parte estruturante do capitalismo. Tornar a maternidade a causa de nossas misérias, diz Federici, é re-naturalizar a maternidade como destino feminino e torná-la algo indesejável por si mesmo; assim como valorizar a ciborgue é reforçar uma ideia de um “corpo máquina”, que se torna um meio de controle social. Vale lembrar que o capitalismo nunca respeitou os limites do corpo, potencializando, controlando e multiplicando suas forças para o trabalho. Nossa tarefa, segundo Federici, seria retomar as condições de reprodução social em nossas mãos, garantir as escolhas das mulheres nesse campo e garantir que a maternidade não se torne um suplício para as mulheres que optarem por isso.
Algumas reflexões do livro são bastante controversas. Federi critica tanto as novas tecnologias reprodutivas, quanto retoma o debate a respeito da “barriga de aluguel”, em voga também após o livro de Sophie Anne Lewis, Full Surrogacy Now, tendo em vista a maneira como essa prática possui um perfil muito evidente de raça, classe e gênero – há fábricas de crianças em diversos países do Sul global. Esta prática não consistiria, conforme sugere Lewis, numa utopia, mas na mercantilização das crianças e do trabalho da mãe, baseada em premissas racistas e classistas.
Um dos pontos mais interessantes do livro é a discussão a respeito da relação entre corpo e sexualidade. Retomando a ideia do “cercamento” dos corpos femininos discutida em Calibã e a bruxa, Federici sugere que a história da acumulação originária se repete em cada destino individual, isto é, na expropriação que cada mulher sofre de seu próprio corpo num processo de subjetivação que é permeado por uma série de instituições sociais. Seja como esposas, seja como prostitutas, as mulheres foram despossuídas do controle de seus corpos e de seu prazer e obrigadas a fornecer ao longo da história o serviço sexual de reposição da força de trabalho dos homens. Até hoje a percentagem de mulheres que fingem orgasmos atesta a permanência deste processo. Por outro lado, diz Federici, a imagem da mulher ideal no capitalismo contemporâneo, subjetivada a partir do imperativo do gozo, sofre o peso da obrigação de ter prazer sexual o tempo todo e, caso isso não ocorra, ainda sofre a culpa de não ser uma mulher suficientemente “liberta”. A discussão, portanto, sobre o quanto as mulheres são danificadas, seja no nosso processo de subjetivação, seja na relação com parceiros (no caso de heterossexuais) que tem pouca ou nenhuma consideração pelo prazer feminino, torna-se também, sob a pena de Federici, um debate relativo às consequências do capitalismo. Nesse âmbito, vale mencionar como Federici é capaz de recorrer às categorias marxistas e repensá-las para discutir temas normalmente não abordados por uma ótica marxista, como nossa relação com os nossos corpos e sexualidade.
O corpo e os corpos femininos, assim como os corpos racializados, sempre foram a condição de existência da força de trabalho. Ao associar estes processos ao de acumulação originária, Federici produz um alargamento do marxismo e fornece um caminho de politização da dor, corporal, psíquica e socialmente produzida. Mais do que isto, amplia também a nossa concepção de violência, mostrando sua multiplicação para além da violência constitutiva das relações econômicas. Nesta chave, a crítica a Butler tem a ver com a proposta de que a luta para desestabilizar as identidades deve acompanhar uma luta pela transformação das condições históricas e materiais de nossa própria vida. Trata-se, nesse diálogo com Butler, de recusar uma política da resistência ao poder e à maneira como ele se inscreve no corpo – que Federici sugere levar a uma posição mais reativa do ponto de vista da ação política – em nome de um projeto político mais amplo e programático: “[…] nós não podemos lutar por autodeterminação sem transformar a maneira como trabalhamos, como a riqueza que produzimos é distribuída e o acesso que temos a ela. Estes objetivos não podem ser alcançados apenas mudando nossos nomes e nossa aparência física. Eles requerem que nos juntemos a outras pessoas para reclamar nosso poder coletivo, para decidir como queremos viver, que tipo de saúde e educação precisamos, que tipo de sociedade queremos criar” (p. 32). Não se trata, como alguns resenhistas do livro apontaram, de uma recusa do movimento trans ou mesmo da teoria queer, mas da defesa de um projeto político comum e revolucionário.
Atualmente, a força que os movimentos feministas, anticoloniais, negros, LGBTQI+ têm demonstrado tornou-os simultaneamente um objeto de disputa política e uma parte do mercado capitalista quer fazer crer que é possível forjar um capitalismo sem racismo, misoginia e homofobia. Silvia Federici, bem como as feministas ligadas à teoria da reprodução social, demonstraram que o capitalismo não pode ser pensado sem estes elementos, uma vez que eles se entrelaçam por meio da reprodução. Por isso, sua defesa da identidade, menos do que um “identitarismo” ou uma essencialização do que é ser “mulher” – ela defende um conceito alargado do termo – busca chamar a atenção para a importância de um chão comum para uma luta política construtiva (e não apenas de resistência), que busca reganhar o controle da riqueza que produzimos, do modo como organizamos a nossa vida social e de nossos próprios corpos.
Ultimamente uma parte da esquerda, orientada por uma leitura do diagnóstico de Nancy Fraser de que a política do Partido Democrata norte-americano teria privilegiado as questões de reconhecimento em detrimento das questões de classe, gerando ressentimento na classe trabalhadora branca, heterossexual[i], tem defendido que as questões “identitárias” prejudicam a luta coesa da classe. Vale lembrar que foi o Partido Democrata o primeiro a desmontar as políticas de bem-estar que atendiam mulheres negras e pobres nos Estados Unidos, assim como foi responsável pela manutenção de uma política monstruosamente neoliberal de encarceramento da população negra. Ou seja, se o Partido Democrata abandonou a classe trabalhadora “tradicional”, não foi por conta de seu apoio ao identitarismo, mas pela sua lealdade a Wall Street. Além disso, a vitória das extremas-direitas no mundo todo mostra que se as pessoas fossem mais “identitárias” e votassem de acordo com a sua identidade de raça, de classe, de gênero e de sexualidade, estes líderes não seriam eleitos.
Um dos grandes achados políticos e teóricos da teoria da reprodução social é a demonstração de que o capitalismo não sobrevive apenas da exploração do trabalho (no sentido marxista do termo, pela via da relação de assalariamento) e que a reprodução é parte inerente do sistema e envolve um processo contínuo de despossessão e expropriação – um processo de acumulação originária, que coloniza, generifica, racializa populações para melhor se apropriar dos seus trabalhos. A invisibização dessa esfera é constitutiva desse processo. O que mostra Silvia Federici, neste e em outros livros, é que há de se abandonar a ideia de que é possível viver num capitalismo não-racista e não misógino, pois isso constitui não apenas uma fonte de equívocos políticos, mas consiste numa avaliação fundada num problema de compreensão teórica mais ampla do funcionamento do sistema capitalista.
Tomar de volta o corpo, sim, mas também mudar a vida e este deve ser um projeto coletivo.[ii]
[i] Cf. FRASER, N.; JAEGGI, R. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020.
[ii] Agradeço as leituras e comentários de Ana Flávia Bádue, Isabella Meucci e Daniela Costanzo ao texto.
