as mulheres no Rio de Janeiro de 1960 em três obras

imagem: montagem a partir de divulgação.

Daniela Costanzo

Neste pequeno ensaio, pretendo abordar as diferenças e aproximações da representação das mulheres no Rio de Janeiro na passagem da década de 1950 para 1960, antes do golpe militar, em três obras recentes da literatura, do cinema e da “cultura pop” brasileira. São elas A vida invisível de Eurídice Gusmão, livro de Martha Batalha, A vida invisível, filme de Karim Aïnouz (baseado no livro de Batalha), e Coisa mais linda, série da Netflix brasileira dirigida por Caíto Ortiz, Hugo Prata e Julia Rezende.

Como se sabe, os anos 1950 foram de intensa mudança na vida nacional. A chegada dos produtos importados, a exportação de produtos culturais brasileiros como a bossa nova, a nova etapa da industrialização, a construção de Brasília, a explosão modernista, a ideologia desenvolvimentista, dentre outras novidades deram o nome de “anos dourados” à década. Parte deste movimento era observado apenas na cidade – em oposição ao campo. Para usufruir de todo o “progresso” que a sociedade vivia, era preciso estar em uma grande cidade e talvez o epicentro desse movimento tenha sido o Rio de Janeiro, que reunia o progresso cultural, econômico e também era a capital do país até 1960. Fenômenos decisivos para este cenário foram a industrialização acelerada acompanhada da urbanização intensa, a qual trouxe para os núcleos urbanos imigrantes estrangeiros, migrantes rurais e negros e negras em busca de colocações no mercado de trabalho crescente (MELLO; NOVAIS, 1998).

Para as mulheres, os costumes mudavam rapidamente, as roupas podiam ser mais curtas, o maiô dava lugar ao biquíni, era aceitável fumar em público e as mulheres de classe média começaram a chegar no ensino superior, embora ainda em minoria e em apenas algumas carreiras. As mulheres trabalhadoras eram empregadas domésticas ou trabalhavam em fábricas de tecido, em confecções ou fazendo serviços para fora de costureira e lavadeira[1]. O casamento agora podia ser regido pelo amor, homens e mulheres podiam escolher seus cônjuges, embora sempre empurrados pela família a fazer uma “boa escolha”. Era comum que os homens se iniciassem sexualmente com prostitutas ou com a empregada doméstica, mas se casavam com uma mulher pura, virgem, que não fosse “falada”. Da classe média para cima, a mulher já podia sonhar com a independência financeira e uma carreira interessante, mas sempre conjugada com a vontade de ser a rainha do lar. O casamento era composto cada vez mais por relações de companheirismo e não de hierarquia, embora o homem ainda fosse o chefe do lar, responsável por manter e prover a família. A natalidade caía e o desejo por menos filhos era justificado pela necessidade de educá-los melhor.

Eurídice Gusmão, mulher de classe média da Tijuca, protagonista do primeiro romance de Martha Batalha, vive essas transformações de dentro do casamento que havia “contraído” nos anos 1940, já que para ela “o casamento era algo endêmico, algo que acometia homens e mulheres entre dezoito e vinte e cinco anos. Tipo surto de gripe, só que um pouquinho melhor”[2]. Neste lugar, ela tenta driblar os obstáculos colocados pelo marido na busca por suas vontades, como vender roupas para fora e tocar flauta. Mas “mulher minha não trabalha” era uma regra comum no estrato social de Eurídice[3], ainda mais quando o homem, funcionário público, consegue sustentar a família sozinho. Só esqueceram de avisar que o trabalho reprodutivo também é trabalho. Impedida por ele de manter essas atividades que a colocavam em contato com o mundo exterior à casa, Eurídice se volta para os livros e mergulha na máquina de escrever.

Permeado por relações de classe e de raça, ao mostrar mulheres da elite discutindo a libertação da mulher, ou um rapaz negro que virou “quase branco aos olhos da sociedade” por ter estudado e conseguido um posto de trabalho qualificado (ou seja, passou por um processo racista de branquificação), o livro faz um apanhado da sociedade carioca no pré-golpe. No entanto, ele é menos radical que o filme de Karim Aïnouz, tanto na forma de apropriação da vida das mulheres pelos homens, quanto pelas saídas que são apresentadas pelas mulheres como sujeitas da história.

Se ninguém avisasse, seria difícil saber que o filme de Aïnouz se passa no Rio de Janeiro dos anos dourados. A imagem comumente relacionada à cidade nesse período incluía praia e bossa nova, mas “A vida invisível” chega no máximo ao porto, que não tem nada de dourado, pelo contrário, é  escuro, úmido e com barulhos pouco agradáveis. A irmã de Eurídice, por se aventurar e não seguir à risca as regras de escolher um bom marido, acaba por se tornar mãe solteira e com isso é expulsa de casa. Com poucas opções, conta com a ajuda de outra mulher que cuida de seu filho e das demais crianças do cortiço onde moram para poder trabalhar. A parceria com essa mulher se torna fundamental para a reprodução da vida da irmã de Eurídice, já que o pai decide contar uma mentira que separa as duas, impedindo a cooperação entre as irmãs que cresceram muito próximas. As imagens das duas irmãs se contrastam ao longo do filme, uma mãe solteira, constantemente suada de trabalho e tendo que encarar o “mundo lá fora” com a ajuda de outras mulheres e a outra presa dentro de casa, sem poder realizar seus desejos na esfera pública, sempre pálida e aparentemente calma, servindo aos homens da família. A relação bloqueada entre as duas irmãs pelos homens e a sororidade entre as mulheres de diferentes origens sociais fazem a ponte para a terceira obra do período, a série.

A série “Coisa mais linda” se passa no Rio de Janeiro da bossa nova, muito parecido com o das novelas, inclusive a forma do drama se assemelha ao formato que estamos acostumados a ver na televisão brasileira: plano fechado, dramas pessoais, etc. O foco nas histórias das mulheres é bastante manifesto. Focada nas mudanças dos costumes da época, a série mostra as mulheres tendo relacionamentos abertos, saindo e cantando na noite, querendo ter o próprio negócio, mas sendo impedidas o tempo todo pelos maridos e pelo Estado, cuja legislação era pouco favorável à autonomia das mulheres.

Neste contexto, a aliança entre mulheres ricas e uma mulher pobre, negra e empregada doméstica, garante a sobrevivência de todas, menos de uma que é assassinada pelo próprio marido a tiros. Nesse caso, o marido é quase absolvido, em um julgamento que lembra bastante aquele do caso Ângela Diniz, narrado no podcast Praia dos Ossos[4], pois a mulher da série, assim como a da vida real, se torna quase que culpada pela própria morte, dada a retórica dos homens da defesa e do juiz.

É difícil imaginar que uma aliança tão benéfica para as mulheres mais pobres teria ocorrido naquele contexto, mas novos horizontes acabam se abrindo para essas mulheres, na série, quando elas encontram as da elite econômica e cultural. O que reforçando a ideia de sororidade, nesse caso talvez advinda de uma certa ilusão compensatória das mulheres das classes altas, já que dificilmente a vida de uma mulher pobre no Brasil é resolvida ao encontrar uma mulher rica, pelo contrário, sua exploração e opressão está justamente nessa relação, permeada por discricionariedade e transferência das mais diversas formas de trabalho precário.   

As três obras mostram as mulheres saindo do “lugar” tradicional que cabia a elas, seja por quererem trabalhar fora, no caso das mais ricas, por pedir demissão, no caso das mais pobres, por se permitirem sair na noite carioca, cantar, tocar, costurar, enfim, serem um pouco mais donas do próprio destino. Por vezes, esse deslocamento ocorre a partir da aliança entre classes e raças. O interessante é que as obras pontuam essas mudanças logo antes do golpe militar, momento em que as mulheres estavam dispersas em suas lutas (TELES, 2015), mas, ao fazerem a “revolução de costumes”, sofreram com a resposta e massificação dos movimentos conservadores, como a “Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade” e, mais ainda, com o golpe militar, que veio também para barrar esses avanços que, apesar de modestos, existiam na vida das mulheres pré- ditadura. Vale pontuar ainda que as obras são feitas de pontos de vista das mulheres brancas, o que acaba resultando em pouca exploração do lugar da mulher negra na sociedade brasileira e até em certa ilusão sobre a convivência entre as raças, talvez em uma espécie de democracia racial das mulheres.

Mais que isso, vale pensar por que o tema tem sido revisitado por essas obras agora. Por um lado, o movimento regressivo que vivemos desde o golpe de 2016 e as eleições de 2018 pode ser visto como um paralelo daquele que aconteceu em 1964 e veio enterrar os avanços observados do fim dos anos 1950 até início dos 1960. Por outro lado, há hoje uma disputa entre os feminismos e sem dúvida essas obras entram nesta disputa. Ao privilegiar a democracia racial e a aliança entre as classes, se exclui as opressões de raça e classe da narrativa feminista feita em Coisa mais linda.


[1] Mello e Novais (1998).

[2] BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 82.

[3] Mello e Novais (1998).

[4] https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/


Referências bibliográficas

MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando Antônio. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da Vida Privada no Brasil: Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 4, 1998.

TELLES, Maria Amélia de Almeida. Violações dos direitos humanos das mulheres na ditadura. Revista Estudos Feministas, v. 23, n. 3., 2015.

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