feminismo, marxismo e teoria crítica: entrevista com amy allen – parte 2

por Bruna Della Torre

Confira a primeira parte da entrevista aqui.

Bruna Della Torre. Em “Emancipação sem utopia: sujeição, modernidade e as exigências normativas da teoria crítica feminista”, você comenta a preocupação de Wendy Brown de que o feminismo pós-estruturalista gerou “uma crítica da dominação masculina sem saída” e que para ser verdadeiramente feminista, a teoria crítica precisa ao mesmo tempo de um esforço de “diagnóstico” e de um “aspecto utópico antecipatório”. Você diz que essa dupla caracterização, ao invés de uma oposição, deveria ser uma tensão produtiva na teoria crítica. Mas em que consiste esse segundo aspecto? Na práxis dos movimentos sociais? Em uma normatividade específica?

Amy Allen. Esta é uma excelente pergunta! Não tenho certeza se tenho uma resposta bem pensada para isso. Nesse ensaio, tento conceituar o momento utópico-antecipatório de uma forma “negativista”. Ou seja, o elemento utópico não reside em uma visão positiva plenamente desenvolvida da sociedade boa ou justa, mas antes no desejo de transformar ou melhorar as relações de dominação e opressão realmente existentes. Nesse sentido, o elemento utópico-antecipatório está intimamente ligado ao diagnóstico – você poderia até dizer que o primeiro surge a partir e em resposta a este último e, como resultado, se aproxima do diagnóstico das relações existentes e das estruturas de injustiça, opressão e dominação. Sua exigência crítica emerge do diagnóstico como uma exigência para desafiar, resistir ou desfazer essas estruturas. A meu ver, isso é o oposto do que Raymond Geuss chamou de “política como ética aplicada” – uma abordagem na qual você primeiro elabora sua concepção política normativa de justiça e, em seguida, avalia o mundo existente à luz dessa concepção e postula metas políticas de acordo com isso. Ao dar prioridade ao aspecto utópico-antecipatório da crítica em vez do aspecto diagnóstico, tal abordagem pode não responder às relações de opressão realmente existentes ou, pior, pode reproduzir inadvertidamente certas características opressivas ou injustas de nosso mundo social existente em seus ideais normativos.

Então, se há uma normatividade específica aqui, talvez resida neste “negativismo”. Mas há mais a ser dito sobre a práxis dos movimentos sociais, porque os movimentos sociais são os pontos em que tais protestos contra a injustiça e a opressão e as exigências críticas responsivas são frequentemente articulados pela primeira vez. Alguns de meus trabalhos anteriores exploram o papel dos movimentos sociais na geração de relações de solidariedade que visam à transformação das relações de dominação e opressão, mas não pensei sobre isso em relação ao meu relato de emancipação sem utopia, como sua pergunta me pede para fazer.

Podem se queixar que essa explicação negativista do utópico-antecipatório seja muito fraca, se tudo que ela almeja é a transformação das relações de dominação e opressão, ao invés de sua completa superação. Não deveríamos ter como objetivo algo mais robusto, uma revolução genuína? Jodi Dean me fez uma versão dessa pergunta quando apresentei uma versão inicial de “Emancipação sem Utopia” em uma conferência. Mas eu não acho que seja necessariamente o caso, especialmente quando se considera o quanto seria necessário para desmantelar e transformar algumas estruturas existentes de opressão e dominação. Se você considerar, por exemplo, as crescentes exigências de abolição das prisões e de redução do financiamento da polícia nos Estados Unidos que estão sendo amplamente articuladas no movimento Black Lives Matter, essas exigências são formuladas, pelo menos inicialmente, em termos negativistas. Com base em uma análise histórica e diagnóstica crítica do papel que o complexo industrial carcerário desempenha na defesa da supremacia branca nos Estados Unidos, os proponentes da abolição das prisões estão pedindo o desmantelamento completo desse sistema. Mas quando você pensa sobre o que realmente significaria abolir o complexo industrial da prisão, você rapidamente vê que essa demanda negativista de transformar um sistema profundamente arraigado de opressão exigiria uma reordenação radical e ampla de quase todos os aspectos da sociedade americana: incluindo habitação, educação, saúde e sistema econômico. O objetivo dos movimentos de abolição das prisões não é simplesmente destruir o sistema prisional existente, mas desmantelar as relações e as estruturas de opressão racista que fazem as prisões parecerem necessárias em primeiro lugar: tornar as prisões obsoletas, como diz Angela Davis. Portanto, o fato de que uma demanda utópica antecipatória é enquadrada em termos negativistas não a torna fraca ou reformista.

Bruna Della Torre. Se eu puder fazer uma pergunta ainda nesse sentido, muitos intelectuais estão usando a ideia de “luta pela vida”, recorrendo à ideia de Butler para definir esses movimentos, mas, como você disse antes, esses movimentos lutam contra a violência policial, a violência contra a mulher e assim por diante. Qual é a sua opinião sobre a definição desses movimentos como uma “luta pela vida ou para viver”?

Amy Allen. Eu estava falando mais especificamente sobre o movimento abolicionista prisional que cresceu recentemente com os protestos Black Lives Matter, ao invés do movimento BLM de forma mais ampla. Mas mesmo se pensarmos sobre este movimento em termos de uma “luta pela vida” mais ampla, como você sugere, acho que é digno de nota que a própria Butler tende a definir a luta pela vida de forma negativa: essa luta surge precisamente porque assassinatos de negros pela polícia sinalizam a total descartabilidade e injustiça das vidas negras, uma falta de importância que tem suas raízes na longa e contínua história do racismo anti-negro, desde a escravidão, o arrendamento de condenados, a segregação de Jim Crow até o encarceramento em massa contemporâneo. Portanto, parece-me que a luta pela vida a que se refere surge como uma exigência de que essas estruturas racistas sejam desmanteladas1.

Bruna Della Torre. Eu gostaria de fazer mais uma pergunta sobre esse assunto. Você defende um conceito de “emancipação negativa” em “Emancipação sem utopia”. Em sua conversa com Rahel Jaeggi e Eva von Redecker, você sugere (desculpe se eu entendi errado) que sua discordância com o marxismo está relacionada ao fato de que você relaciona o marxismo a uma utopia muito positiva (e eu me pergunto se você vê essa utopia na crítica imanente de Marx ao capitalismo em O capital, por exemplo). Também nesta entrevista, você afirma que, como Freud, que quis transformar “a miséria histérica em infelicidade comum”, seu objetivo seria transformar relações de dominação em relações de poder móveis e reversíveis. Então, minha pergunta seria a seguinte: uma concepção de emancipação negativista deve necessariamente desistir de um projeto socialista?

Amy Allen. De jeito nenhum! Especialmente nos Estados Unidos agora, acho que o que precisamos é de mais socialismo democrático. E, como tentei sugerir em minha resposta à pergunta anterior, uma explicação negativista da emancipação também pode ser bastante radical, expansiva e exigente.

Mas entendo por que você chama a tenção para essa questão, dada a minha rejeição um tanto superficial de Marx e do marxismo na discussão com Rahel e em The end of Progress. Na verdade, não estou nem um pouco satisfeita com a forma como lido com Marx em meu livro e no momento estou trabalhando em alguns ensaios que tentarão desenvolver ainda mais a crítica extremamente breve de Marx que apresento no primeiro capítulo.

Ainda quero defender a ideia básica de que a teoria crítica não pode olhar para Marx buscando o tipo de reflexão radical do progresso histórico que eu acho que precisamos. Mas vale notar que o ponto crítico é bastante estreito: aquilo que podemos chamar de filosofia oficial da história em Marx – conforme articulado em A ideologia alemã e nas Teses sobre Feuerbach – que permanece comprometido com uma leitura progressiva da história por meio da qual o surgimento do capitalismo na Europa moderna representa um avanço sobre o feudalismo que, por sua vez, será superado pelo socialismo.

Isso é verdade num sentido tecnológico – em termos do desenvolvimento das forças de produção – mas também no sentido normativo – ou seja, com o capitalismo também temos o surgimento de direitos e liberdades burguesas, que são lamentavelmente incompletos e inadequados, mas ainda assim importantes e que vale a pena defender. Então, eu diria que a questão não é tanto se a concepção de utopia de Marx é positiva. Na verdade, acho que provavelmente é mais correto dizer que ele tem uma explicação negativista da utopia – Marx tem surpreendentemente pouco a dizer sobre como será a sociedade socialista plenamente realizada, além de que seremos capazes de caçar de manhã e criticar à noite –, mas está empenhado em fundamentar a sua visão de futuro numa leitura progressiva da história da modernidade europeia. Afinal, esse é o seu grande desacordo com os socialistas utópicos que postulam ideais que não estão fundamentados na realidade social existente.

Certamente as coisas ficam mais complicadas na obra posterior de Marx, em que ele não apenas reconhece claramente o papel da escravidão e do colonialismo no desenvolvimento do capitalismo europeu, mas também se interessa pelos sistemas econômicos e pelas histórias de culturas e contextos não europeus. Esses são, de fato, momentos importantes na obra de Marx, e receberam uma reconstrução poderosa de Kevin Anderson em seu livro Marx at the Margins2. Ainda assim, não vejo que eles contribuam para uma filosofia alternativa da história que possa substituir ou suplantar a abordagem da história oferecida em suas obras anteriores. E esse é realmente o ponto principal que enfatizei em meu trabalho até agora: se estamos procurando uma explicação alternativa da história que rompa com as concepções progressistas e desenvolvimentistas da modernidade, então, não a encontraremos na obra de Marx. Podemos encontrar alguns comentários ou análises políticas ou reflexões jornalísticas que são compatíveis ou sugerem tal abordagem, mas essas não constituem, na minha opinião, uma concepção alternativa, não progressiva e totalmente desenvolvida da história como aquela encontrada na tradição genealógica.

Bruna Della Torre. Fiz essa pergunta porque também acho que poderíamos ler – por meio de Adorno e das Novas Leituras de Marx (H. Backhaus, Helmut Reichelt, M. Postone, R. Kurz e Roswitha Scholz) – uma “dialética do esclarecimento” na obra de Marx, especialmente em momentos como o capítulo sobre acumulação primitiva, por exemplo. Parece-me que o entusiasmo de Marx com o progresso – no Manifesto, por exemplo – perde sua energia na maturidade de Marx.

Amy Allen. Eu concordo com esse último ponto, com certeza! Talvez pudéssemos distinguir entre uma filosofia oficial e uma não oficial da história na obra de Marx. A oficial é a versão do materialismo histórico dos primeiros trabalhos de Marx, aquela que todos aprendem quando começam a ler Marx: uma história dos estágios progressivos de desenvolvimento dos modos de produção de formas comunais / agrárias, do feudalismo ao capitalismo e eventualmente desse último ao comunismo por meio da ação revolucionária do proletariado. 

Esta é uma noção de progresso assentada na noção de crise, com certeza. O movimento de um estágio para outro ocorre quando as estruturas econômicas existentes se tornam grilhões na expansão das forças produtivas e, portanto, são destruídas – mas é progressivo mesmo assim, até mesmo de modo inevitável. Acho que você está certa em dizer que o entusiasmo de Marx por esta concepção de história e progresso diminui em sua obra posterior e talvez seja até mesmo parcialmente minado pelo argumento de O Capital. Ainda assim, parece-me que Marx nunca articula totalmente uma filosofia da história alternativa e não progressiva em sua obra posterior, mesmo que muitas coisas que ele diga possam apontar nessa direção. Portanto, talvez se pudesse dizer que existe uma filosofia da história não oficial e não progressista que poderia ser reconstruída a partir da obra tardia de Marx, e que alguém como Adorno desenvolve essa vertente de sua obra ainda mais – e que essa vertente é levada ainda mais longe no obras da escola da Wertkritik a que você se refere.

Se essa é uma maneira convincente de pensar sobre isso – e este é um ponto que vale a pena enfatizar – então segue-se que criticar a filosofia oficial da história de Marx não requer de forma alguma desistir da crítica do capitalismo. Acho que esse ponto, infelizmente, fica obscurecido em alguns dos debates entre marxistas e teóricos pós-coloniais. Isso só aconteceria se fosse impossível separar a crítica do capitalismo da filosofia da história na obra de Marx. Na verdade, elas costumam andar juntas, especialmente nos primeiros trabalhos de Marx. Mas, como sugere sua pergunta, o argumento apresentado no volume 1 de O Capital procede em termos diferentes, termos que são indiscutivelmente independentes da filosofia da história anterior. Portanto, mesmo dentro da estrutura do próprio pensamento de Marx, pode ser possível aceitar sua crítica do capitalismo sem, portanto, estar comprometida com sua filosofia da história. E certamente se olharmos para a história da teorização marxista no século 20, temos vários exemplos proeminentes de críticas ao capitalismo que rompem completamente com as leituras progressistas da história. Como acabei de sugerir, incluiria Adorno nessa categoria, mas também, de uma forma muito diferente, Althusser. Embora este seja apenas um palpite, e que exigiria mais trabalho para comprovar, parece-me que esta é uma afinidade interessante e pouco explorada entre os teóricos críticos do marxismo ocidental da Escola de Frankfurt e o marxismo estrutural de Althusser – uma afinidade que foi obscurecida, eu acho, pelos debates acalorados entre esses dois campos na década de 1970 sobre a questão do humanismo.

Bruna Della Torre. A leitura de Habermas da Dialética do esclarecimento foi central para o desenvolvimento da teoria crítica contemporânea. Ele viu no diagnóstico de Adorno e Horkheimer um fechamento que talvez pudéssemos designar como claustrofóbico no contexto da transformação das relações sociais. Uma vertente da Teoria Crítica (de viés marxista) viu isso como uma virada liberal, especialmente se considerarmos os desenvolvimentos posteriores da teoria da justiça. Ao invés de ver Habermas como um “traidor” do projeto da teoria crítica, você busca resolver os problemas de sua teoria, especialmente em suas reflexões sobre o progresso, voltando-se para a primeira geração da teoria crítica, e para Adorno, em particular. Como você vê essa tensão entre a chamada primeira geração e as gerações subsequentes da Escola de Frankfurt?

Amy Allen. Acho que sua pergunta capta muito bem essa tensão. De muitas maneiras, meu livro The End of Progress tem uma espécie de estrutura de “volta a Adorno”. O projeto, na verdade, surgiu de uma contribuição que me pediram para fazer para um simpósio na American Philosophical Association sobre o tema do “Futuro da Teoria Crítica”. Como aludi anteriormente, ao refletir sobre essa questão, fiquei convencida de que o futuro da teoria crítica exigia recuperar alguns dos achados mais radicais da primeira geração, achados que se perderam na virada comunicativa de Habermas. É por isso que o livro vai de Habermas, a Honneth e a Forst e depois retorna a Adorno e Foucault no final.

Eu não descreveria Habermas como um traidor do projeto da teoria crítica, mas acho que seria difícil negar que, à medida que desenvolveu sua teoria da ação comunicativa, seu projeto se tornou menos radical e mais afirmativo do status quo. O desenvolvimento dessa teoria acompanhou sua passagem do marxismo para o liberalismo e da psicanálise para a psicologia do desenvolvimento – isto é, marcou seu afastamento de duas das principais inspirações teóricas do início da Escola de Frankfurt. Habermas tinha suas razões, é claro, algumas das quais tinham a ver com sua crítica dos becos sem saída e aporias que ele via na teoria de Adorno. Mas eu nunca achei sua crítica à Dialética do esclarecimento tão convincente assim. E me parece que há maneiras de defender, por exemplo, o projeto de Adorno contra as críticas de Habermas, então, é possível fazer suas perspectivas dialogarem. A ideia não é escolher alianças teóricas. Não acho que a teoria crítica seja ou deva ser sobre a escolha de “times”, sejam elas Adorno, Habermas, Foucault ou qualquer outra coisa – este é um aspecto da minha formação na pós-graduação que agora considero problemático, e que demorei muito tempo para tentar desaprender. A ideia é recorrer ao leque de teorias e trabalhos de que dispomos para tentar construir uma crítica das relações e estruturas de opressão e dominação na sociedade contemporânea e identificar perspectivas de emancipação. Para certos aspectos desse projeto, o trabalho de Habermas é muito útil; para outros, nem tanto. Mas acho que o mesmo poderia ser dito sobre qualquer teórico.

Bruna Della Torre. Em “Emancipação sem utopia”, bem como em outros escritos, você afirma que recorre a Foucault para buscar uma saída para o problema da sujeição que ficou em segundo plano nas teorias de Habermas e Honneth. Por favor, perdoe-me se estou sendo uma adorniana muito ortodoxa neste assunto, mas esta questão sempre me deixou curiosa. Por que buscar uma teoria da sujeição em Foucault e não na primeira geração da teoria crítica, nas análises do autoritarismo, da indústria cultural e de seu uso da psicanálise? Claro, mais do que Foucault, Butler fez avanços na teoria feminista com que a Escola de Frankfurt nem sonhava, mas por outro lado, poderia ter sido possível, talvez, evitar o problema de que “nada é externo ao poder” presente em Butler e Foucault…

Amy Allen. Provavelmente, a resposta mais honesta a essa pergunta é autobiográfica, o que pode não ser tão satisfatório. Mas, como já mencionei, na época em que encontrei a teoria crítica, já havia estudado Foucault de perto e, para o bem ou para o mal, fui muito influenciada por suas análises do poder. E não li os teóricos críticos da primeira geração até um pouco mais tarde, depois de já ter estudado Habermas e Honneth. Então, não acho que o caminho que você sugere jamais teria me ocorrido, dada a minha trajetória intelectual.

Dito isso, mesmo agora não tenho certeza se concordaria que a análise da indústria cultural oferecesse uma teoria da sujeição preferível à encontrada em Foucault e Butler. Embora eu ache a tese da indústria cultural bastante atraente e ainda muito relevante (gosto muito de ensiná-la, o que faço regularmente), ela certamente parece ter algumas implicações totalizantes, quer dizer, que tendem a apresentar os consumidores de cultura como mais ou menos carentes de agência crítica. E, além disso, existe a preocupação muito real com o elitismo na crítica à indústria cultural. Por mais que admire Adorno, sempre me senti mais atraída pelas reflexões de Benjamin sobre a estética, especialmente quando se trata de cinema. Para não falar da crítica extremamente problemática do jazz de Adorno! Mas talvez você tenha uma interpretação diferente da tese da indústria cultural?

Bruna Della Torre. A interpretação de Adorno do jazz é de fato terrível. No entanto, eu leio “indústria cultural” como uma teoria de subjetivação e dominação. Penso em como Adorno e Horkheimer falam sobre disciplinar a alma por meio da indústria cultural e exploram a dinâmica entre o prazer e a submissão, além de problematizarem como as pessoas se envolvem nesse processo contraditório de subjetivação. A formação de feminilidades e masculinidades administradas poderia ser derivada dessa discussão. Além disso, vejo isso mais como um plano de pesquisa do que uma teoria fechada, já que Adorno dedicou grande parte de sua vida à crítica da televisão, do esporte, do rádio, dos romances mais vendidos, do tempo “livre” e assim por diante.

Amy Allen. Esse é um ponto muito interessante. Admito que não tinha pensado nisso dessa forma antes. Acho que, para mim, a questão seria: em que medida podemos encontrar uma abordagem convincente de agência crítica ou autoconstituição – algo semelhante à noção de Foucault de práticas ou tecnologias do si – na noção de indústria cultural? Eu não achei essa perspectiva em minhas leituras desse trabalho, mas admito que também não li esses textos com essa pergunta em mente.

O caso da análise da personalidade autoritária é diferente, sem dúvida, e eu concordaria que o uso da teoria psicanalítica nesta análise adiciona uma camada de complexidade à sua explicação da formação do sujeito no capitalismo tardio. Ainda assim, acho que essa abordagem se aproxima um pouco demais, para o meu gosto, de uma concepção freudiana clássica do ego racional – como uma estrutura de dominação internalizada, embora seja necessária para evitar a fraqueza do ego que leva a personalidades autoritárias. Mas sou muito solidária com a virada para a psicanálise para adicionar profundidade e complexidade às abordagens da sujeição, o que não é algo que se encontra em Foucault (embora esteja lá na obra de Butler, particularmente em seu The Psychic Life of Power, que sempre foi meu livro favorito). Portanto, em geral, eu concordaria que a relação com a psicanálise é uma característica positiva do início da Escola de Frankfurt que os teóricos críticos contemporâneos fariam bem em recuperar. Isso é algo que defendo longamente em meu próximo livro, Critique on the Couch: Why Critical Theory Needs Psychoanalysis. Mas ao contrário de Horkheimer, Adorno e Marcuse, que se valem de uma leitura historicizada, mas em outros aspectos um tanto ortodoxa de Freud, e ao contrário de Honneth, que se volta para Winnicott, recorro à obra de Melanie Klein, que, a meu ver, oferece uma abordagem distinta da subjetividade que enfatiza tanto a dualidade ambivalente das pulsões intrapsíquicas (tanto eróticas quanto agressivas) quanto nossos relacionamentos intersubjetivos. Para Klein, os sujeitos são formados em e por meio de suas relações com seus objetos primários (seu cuidador primário), mas essas relações são sempre mediadas pelas lentes da fantasia inconsciente que, por sua vez, são moldadas pelas pulsões. Com seu foco nas relações objetais pré-edipianas, Klein, portanto, oferece uma alternativa intersubjetiva para a abordagem freudiana ortodoxa, mas, ao mesmo tempo, sua análise é muito mais rica, complexa e ambivalente do que a visão winnicottiana de Honneth. Dessa forma, ela preserva parte do conteúdo explosivo da teoria da pulsão que foi tão importante na recepção da psicanálise pela primeira geração.

 Bruna Della Torre. Nos EUA, vocês passaram os últimos 4 anos sob a administração Trump, que agora está fazendo tudo o que pode para permanecer no poder. No Brasil, acho que seria possível dizer que nossa situação é ainda pior com o Bolsonaro. Notícias falsas, neoliberalismo, autoritarismo, misoginia, violência policial … Você acha que vivemos um momento de retrocesso, como dizia Adorno? Ou você acha, como parte da teoria crítica – como Nancy Fraser, por exemplo – que estamos colhendo os frutos do “neoliberalismo progressista” nos últimos anos? O que estou tentando perguntar é: qual é o grande inimigo das forças emancipatórias hoje? É o neoliberalismo progressista ou o fascismo?

Amy Allen. Acho que a melhor resposta para essa pergunta é: todas as opções acima e mais algumas. Se entendi Fraser corretamente, sua afirmação é que a hegemonia do neoliberalismo a partir da década de 1990 – consolidada pela convergência do neoliberalismo progressista à esquerda e do neoliberalismo reacionário à direita – ajudou a pavimentar o caminho para o recente ressurgimento da política autoritária. Em geral, acho que sou mais simpática do que Fraser em relação a políticas e teorias baseadas no reconhecimento ou na identidade e estou um pouco preocupada com as implicações de seu retorno a uma estrutura marxista bastante ortodoxa em que o capitalismo é o conceito principal, mas não há duvida de que ela está correta em observar que o capitalismo não foi embora apenas porque a crítica marxista caiu em desgraça na esquerda acadêmica nas décadas que cercaram a virada do século 21. Na verdade, assumiu uma forma neoliberal muito mais perniciosa, menos igualitária e financeirizada. Embora devamos ter o cuidado de não romantizar o Estado de bem-estar, acho que caracterizar seu colapso e o esvaziamento resultante de vastos setores da sociedade como um momento de regressão não está completamente fora de lugar. E Fraser está sem dúvida certa ao afirmar que os chamados democratas da Nova Via ou da Terceira Via, como Bill Clinton, tiveram um papel significativo nesse processo. O abandono da classe trabalhadora pela esquerda política, particularmente nos antigos centros de manufatura do Meio-Oeste (o chamado Rust Belt) criou uma enorme abertura no campo político pela qual Trump mais tarde dirigiu um caminhão. Se Fraser estiver certa, e eu acho que ela está, então não seremos capazes de derrotar o autoritarismo de Trump nos Estados Unidos, a menos que também superemos o neoliberalismo progressista e forjemos uma nova coalizão populista que reúna os eleitores de Bernie e a MAGA [Make America Great Again]. Embora eu tenda a não ser otimista sobre o estado da política dos Estados Unidos, vejo alguns lampejos de esperança de que tal realinhamento seja possível.

Ainda assim, não há muitos motivos para otimismo, porque as forças emancipatórias também enfrentam vários outros grandes inimigos. O movimento Black Lives Matter nos lembrou da injustiça contínua da supremacia branca, da violência policial e do encarceramento em massa racializado; todos legados do sistema escravista que permitiu aos Estados Unidos se tornar uma economia capitalista líder no mundo. Também existe agora a possibilidade muito real de que os direitos reprodutivos das mulheres há muito estabelecidos e as batalhas mais recentemente vencidas pelos direitos dos homossexuais sejam em breve desfeitos pela Suprema Corte, devido ao comportamento hipócrita dos senadores republicanos. Esses desenvolvimentos trazem à tona a natureza profundamente antidemocrática da estrutura política dos Estados Unidos – o que sem dúvida será um fator importante na próxima eleição presidencial, em que Biden precisará conquistar uma grande margem no voto popular apenas para ter chance de ganhar o Colégio Eleitoral e a presidência. E tudo isso está acontecendo em um cenário de uma pandemia descontrolada e uma catástrofe climática cada vez mais acelerada, ambas prejudicando desproporcionalmente as comunidades de cor. As apostas não poderiam ser mais altas.


Notas
1. Cf. George Yancy e Judith Butler, “What’s Wrong with All Lives Matter,” The New York Times, January 12, 2015, https://opinionator.blogs.nytimes.com/2015/01/12/whats-wrong-with-all-lives-matter/.
2. Kevin Anderson, Marx at the Margins: On Nationalism, Ethnicity, and Non-Western Societies (Chicago: University of Chicago Press, 2010).


Bruna Della Torre é pós-Doutoranda no departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP e editora executiva da revista Crítica Marxista. Ela é bacharel em ciências sociais, mestra em Antropologia e doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Tem experiência em docência no ensino superior nas áreas de sociologia, filosofia e pedagogia e em pesquisa nas áreas de teoria crítica e marxismo.

Amy Allen é professora pesquisadora de filosofia e estudos sobre mulheres, gênero e sexualidade na Universidade Estadual da Pensilvânia. É autora dos livros: The Power of Feminist Theory: Domination, Resistance, Solidarity; The Politics of Our Selves: Power, Autonomy and Gender in Contemporary Critical Theory; The End of Progress: Critical Theory in Postcolonial Times.

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