
Maria Lygia Quartim de Moraes[*]
1. O feminismo revolucionário: Clara Zetkin e Alexandra Kollontai
Muitas das conquistas obtidas pelas mulheres no decorrer do século XX são o resultado da militância e da prática teórica de Clara Zetkin (1867-1933) e Alexandra Kollontai (1872-1952). Elas fazem parte da geração seguinte à Marx/Engels e atuaram no campo das lutas de classes concretas. Expoentes do movimento comunista internacional, Clara e Alexandra dedicaram grande parte de suas vidas à causa socialista, tanto na criação dos partidos comunistas na Alemanha e Rússia quanto, após a vitória da revolução bolchevique, à tarefa de construção de uma nova sociedade. Atuaram, ademais, na luta pela emancipação da mulher, escrevendo, debatendo, organizando trabalhadoras e socialistas nos movimentos de mulheres socialistas. Mas a grande organizadora do feminismo socialista foi Clara Zetkin, alemã, professora, jornalista e militante política. De todas as feministas socialistas é ela quem dá prioridade a organização e a militância com as mulheres, fundando em 1890 a revista Igualdade, órgão do movimento feminino operário alemão. Clara Zektin participou ativamente da organização das primeiras associações operárias femininas e associações de mulheres socialistas que, posteriormente, se agrupariam numa federação.[1] Em 1907, por ocasião da 1ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, Clara foi co-autora de uma resolução (aprovada) em que se exigia “direito a voto; igualdade de oportunidades e de salários para igual trabalho e proteção social à mulher e à criança”.[2]
Alexandra Kollontai nasceu na Rússia, caçula amada e mimada de uma família de posses, recebeu formação teórica na própria casa paterna, com uma professora vinculada às camadas revolucionárias russas. Casou-se por amor, segundo ela, e teve um filho mas, três anos depois de casada, “a existência de dona de casa e esposa se converteu numa espécie de jaula”,[3] o que a levou à militância junto ao movimento operário revolucionário russo ao mesmo tempo em que prosseguia seus estudos.
É testemunha da violenta repressão policial exercida pelo czar: “O domingo sangrento de l905 surpreendeu-me na rua. Eu me dirigia com os manifestantes para o Palácio de Inverno e a visão do massacre cruel de operários desarmados ficou para sempre em minha memória”.[4] Seguiram-se anos difíceis para a oposição, assim, em 1908, quando defensoras burguesas dos direitos femininos convocam para o Primeiro Congresso de Mulheres de toda a Rússia, os bolcheviques, apontando as limitações da propostas, declaram-se contra sua participação. Alexandra Kollontai, não obstante, procurou fazer com que as operárias socialistas participassem, em pequenos grupos. Consegui levar a cabo este projeto, recorda ela em sua autobiografia, não sem resistências. Meus camaradas de partido nos culparam, a mim e a minhas correligionárias, de sermos “feministas” e conceder excessiva importância aos nossos assuntos de mulheres. Naquela época, não sabiam ainda valorizar em absoluto o papel extraordinário que cabia às trabalhadoras, às mulheres economicamente independentes, na luta política.[5]
Em represália à militância de Kollontai, a polícia política russa aumenta o cerco em sua volta, obrigando-a ao exílio na Alemanha, onde ingressou no Partido Socialdemocrata, militando como “oradora popular” e escritora, até 1917. Data de 1909 o aparecimento dos Elementos sociais da questão da mulher, a maior obra (também em tamanho, com mais de 400 páginas) de Alexandra sobre a condição da mulher. Ao referir-se ao tema da evolução e declínio da família, a autora utiliza os escritos de Engels e A Mulher e o Socialismo de Augusto Babel. Às teses consagradas pelo socialismo sobre o assunto, Kollontai adiciona dados e informações sobre a situação da mulher russa. Comentando as propostas dos socialistas para as “mulheres trabalhadoras esmagadas por um duplo fardo: as obrigações domésticas e o trabalho na fábrica”, ela aponta uma série de medidas sociais e políticas que poderão “aliviar a penosa situação das mulheres e das mães, de proteger a saúde e mesmo a vida da geração futura.”
2. Quem diria que o dia internacional da mulher inauguraria uma revolução?
Leon Trotsky, na sua História da Revolução Russa, sublinha a importante participação das mulheres no processo revolucionário. No dia 8 de março de 1917, um grupo de mulheres, arriscando a repressão da polícia do czar, prepara uma greve e uma marcha pela cidade de São Petersburgo. São operárias, em sua maioria, muitas sindicalizadas e socialistas. E, nas palavras de um testemunha da época, Leon Trotsky:[6] nos círculos da social democracia o dia das mulheres seria comemorado com os habituais discursos e reuniões e que, apesar dos descontentamentos e o estado geral de ânimo, ninguém poderia prever na véspera que o 8 de março seria o ponto de partida para a revolução russa. Mas, ao contrário do previsto, as mulheres declararam greve nas fábricas e saíram às ruas, acompanhadas por operários e outros descontentes com a situação de fome, exploração e guerra em que viviam os russos. Os cossacos, chamados para reprimir a manifestação, aderiram ao movimento e a revolta se espalhou pelas cidades e pelo país: foram os dez dias que abalaram o mundo.
A presença ativa das mulheres no processo revolucionário e o retorno de Alexandra do exílio alemão possibilitaram que de uma só vez as mulheres russas conquistassem direitos que até hoje são negados ou parcialmente aceitos na maior parte do mundo. Pela primeira vez na história da humanidade as mulheres tiveram seus direitos igualados com os dos homens, ademais do acesso livre ao divórcio e o direito ao aborto. Tendo em vista superar a dupla jornada de trabalho. Com a vitória dos comunistas, Kollontai é nomeada Comissária do Povo da previdência social, isto é, o correspondente a um ministério. Conta ela que:
minha principal tarefa como Comissária do Povo consistia no seguinte: melhorar, por meio de decretos, a situação dos inválidos de guerra; em suprimir a religião no ensino ministrado às meninas, cujos colégios dependiam do Ministério […] em implantar o direito de que as próprias alunas administrassem seus colégios. Em transformar os antigos orfanatos em residências estatais para crianças […] em criar os primeiros alojamentos para os pobres e menores e sobretudo, em organizar […] um sistema de sanatórios gratuitos por todo o país.[7]
Além dos problemas econômicos que enfrentava seu país, esgotado pelas guerras externas e internas, Alexandra Kollontai teve de afrontar o moralismo vigente, que pesava especialmente sobre a mulher. Ela atacou o que chamava de mentalidades atrasadas, defendendo uma nova mulher que trabalha, é independente e abdica da vida familiar burguesa (não será por coincidência que este perfil correspondia exatamente à própria Kollontai). Ao analisar as novas heroínas dos romances contemporâneos, ela comenta que “a mulher transforma-se gradualmente de objeto da tragédia da alma masculina em sujeito de sua própria tragédia”.[8] Vale dizer, a mulher torna-se sujeito de sua própria história.
O destaque do tema da mulher trabalhadora não se reduz, no entanto, à questão dos direitos trabalhistas e à necessidade de socialização do trabalho doméstico. Kollontai, com muita sensibilidade, captou outro aspecto da opressão feminina, tal como ela formula em A nova moral e a classe operária, de 1918. Ela acreditava na capacidade do operariado em dar origem a uma nova moral em que a dedicação ao bem comum e à solidariedade entre homens e mulheres suplantaria o amor egoísta e antissocial da ideologia burguesa.
A contemporaneidade de dois temas assinalados– a crise das relações entre os dois sexos, especialmente visível a partir da própria contestação feminista ao modelo familiar tradicional (Kollontai diria “burguês”) e a questão das possibilidades de se preservar Eros nas relações sociais (que aponta para a abordagem psicanalítica e as possibilidades de construção de uma sociedade que não ocasione tanto mal-estar para seus membros) – são formulações que demonstram a sensibilidade de Kollontai. No entanto, a adesão das marxistas brasileiras privilegiou mais a dimensão social dos seus escritos do que propriamente sua visão sobre a nova qualidade da relação homem/mulher.
Na verdade, a radicalidade de Alexandra no tocante ao programa de libertação sexual não foi superada por nenhuma outra feminista do século XX. Pode-se bem imaginar o escândalo que causava sua defesa do amor livre, da liberalização do aborto e de uma nova família. O libertarismo de Alexandra também não era de agrado do comunismo oficial, tanto que o título de sua autobiografia, Memorias de uma mulher comunista sexualmente emancipada sofreu várias censuras pelos tradutores, a maior parte suprimindo o “comunistas” e outros o “sexualmente[9].
Assim como as conquistas republicanas obtidas nas primeiras fases da Revolução Francesa, como a Declaração dos Direitos do Homens e do Cidadão possibilitaram um novo patamar políticos e teórico para as reivindicações das mulheres, as teses emancipacionistas do comunismo foram importantes para garantir novos direitos, especialmente nos primeiros anos da Revolução Russa de 1917. Pela primeira vez, um governo promoveu mudanças radicais nos direitos, inclusive no direito ao uso do próprio corpo (no caso, a liberalização do aborto), igualando os direitos masculinos e femininos. Penso que Alexandra Kollontai, por seus escritos e militância, é uma mais do que adequada representante dessas conquistas socialistas.
Ao mesmo tempo, cabe uma reflexão sobre o descompasso entre as aspirações de uma comunista libertária e a esmagadora maioria do povo russo, mal saído de relações feudais e fieis da Igreja Ortodoxa.
3. Como explicar o retrocesso atual na Rússia pós-comunista?
Com a revolução de 1917 as mulheres russas conquistaram direitos políticos e econômicos ademais do direito ao aborto; acesso a todas as responsabilidades e trabalhos, ao mesmo tempo em que se instaurava punições para as agressões no seio das famílias. Cem anos mais tarde, no dia 12 de janeiro de 2017, pela esmagadora maioria de 368 votos (contra um de um deputado comunista) foi votada um projeto de lei que visa despenalizar as violências domésticas em nome da “tradição familiar”, com apoio da Igreja Ortodoxa.
Como explicar os retrocessos sofridos em matéria de direitos das mulheres? Mulher, Estado e Revolução de Wendy Goldman analisa a politica familiar e a vida social das soviéticas nos vinte primeiros anos do regime soviético. O livro detalha como as conquistas iniciais sobre o direito ao próprio corpo e sexualidade foram aos poucos sendo solapadas, especialmente a partir da morte de Lenin. A reversão ideológica com respeito à emancipação feminina foi uma dupla tragédia: impediu uma nova ordem revolucionária e apagou da História oficial o legado da geração de Alexandra Kollontai. Basta constatar a ausência de quaisquer comemorações oficiais do centenário da revolução na própria Rússia.
Mas às causas apontadas no livro não seria preciso adicionar a questão da qualidade da relação entre os gêneros na vida privada?
Mesmo Alexandra Kollontai, que de todas as marxistas foi a que mais se preocupou com a qualidade das relações entre os gêneros, acreditava que a socialização da vida familiar, com creches e restaurantes coletivos, libertaria a mulher do peso da domesticidade. No entanto, seria preciso que os esforços não se limitassem a educar a mulher para a sociedade socialista como principalmente educar os homens para deixarem de ser machistas.
Finalmente, temos de enfrentar o fato de a defesa dos direitos democráticos depende do grau de comprometimento político da cidadania. Nesse sentido, a importância da transmissão da historia de lutas e conquistas de uma geração para a seguinte é fundamental pois, como bem ressaltou Angela Davis, a liberdade é uma luta permanente.
[*] Maria Lygia Quartim de Moraes é professora colaboradora da Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp e professora visitante da Pós Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Unifesp – Baixada Santista. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica, atuando principalmente nos seguintes temas de pesquisa: movimentos sociais, memória política, feminismo e direitos humanos. É autora de A experiência feminista nos anos 1970 (1990), Marxismo e feminismo no Brasil (1996), Feminismo, movimento de mulheres e a (re)construção da democracia em três países da América Latina (2003), Marxismo, psicanálise e o feminismo brasileiro (2017) dentre outros títulos.
[1] KOLLONTAI, Alexandra. Autobiografia de uma mulher emancipada. São Paulo, Editora Proposta, 1980, p.52.
[2] Idem, p. 62.
[3] Idem, p. 62.
[4] Idem, p.16.
[5] Idem, p.19.
[6] Historia da Russia
[7] Idem, p. 34.
[8] STORA-SANDOR, Judith. Alexandra Kollontai: marxisme et révolution sexualle. Paris, Maspero, 1973, p.132.
[9] Talvez até por uma ironia histórica, Simone de Beauvoir intitulou o primeiro livro de sua autobiografia de “Memórias de uma moça bem-comportada”.

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