raça, gênero e as formas do capital

imagem: wikipedia

Ana Flávia Bádue[1]

Uma crítica comum que uma parcela (mais ortodoxa) do marxismo ainda faz aos estudos sobre raça, gênero e classe é que as duas primeiras seriam secundárias à gênese e reprodução do capital. Muito embora não se encontre esse tipo de abordagem na própria obra do Marx, o movimento do capital seria, segundo essa perspectiva, universal e abstrato e, por isso, não reconheceria condições culturais, sociais, raciais, etc. Essa leitura é, obviamente, errônea, pois ela se deixa seduzir pelo desejo que o próprio capital tem de ser uma entidade sem história, sem lastro, sem cor e sem gênero. Além disso, ela reproduz a associação de uma série de dicotomias: branquitude, masculinidade e classe como representações da universalidade, de um lado, e negritude (que se torna sinônimo de raça) e mulheres (que se tornam as portadoras do gênero), como particularidades, de outro. Essa postura, além de racista e sexista, acabou afastando, por razões óbvias, uma série de pensadorxs, que acabaram optando por promover formas de crítica ao capitalismo, ao racismo e ao sexismo de maneira independente (ou, em muitas vezes, em oposição) ao marxismo, como também silenciando ou minimizando o trabalho do feminismo e do pensamento negro marxista.

Mas os ventos mudam, e estamos vivenciando um momento em que esse tipo de abordagem é objeto de crítica por dentro mesmo do marxismo. Existem hoje uma série de estudos e pesquisas que aprofundam esse movimento crítico, buscando compreender o capitalismo como uma universalidade concreta, a partir das lentes do racismo estrutural. Neste ensaio, busco resgatar algumas dessas abordagens. Parto do pensamento negro marxista estadunidense clássico, que explica os modos como raça e classe são constitutivos, e em seguida apresento a literatura contemporânea sobre capitalismo racial, que aprofunda as lições das análises mais clássicas para sugerir que todas as formas abstratas do capitalismo são sempre e já racializadas em sua gênese. Além de atestar que gênero, raça e classe estão imbricados, essa linhagem do pensamento negro marxista observa que raça e gênero são tanto condições concretas da produção e reprodução do capital, como também produzidas por ele. Por fim, apresento como autoras contemporâneas têm discutido questões similares no Brasil. Tendo como ponto de partida essa literatura, o presente ensaio visa endossar o argumento de que raça e gênero são centrais para os processos de expansão de fronteiras para assegurar o movimento de acumulação de capital, por oferecerem o substrato concreto a partir do qual o capital consegue se erigir como abstração.

Corpos negros e a expansão de fronteiras do capital

Em 1933, W.E.B Du Bois publicou um texto nos Estados Unidos intitulado Marxism and the Negro Problem no qual partia do marxismo para analisar as relações entre raça e classe nos Estados Unidos, uma vez que os sindicatos estadunidenses se posicionavam contrariamente aos trabalhadores negros e sua agenda de lutas por acesso a direitos sociais. Diante desse problema político, Du Bois argumenta que trabalhadores brancos excluíam trabalhadores negros de sua agenda pois assim conseguiam acessar melhores condições de trabalho, de maneira restringida (Du Bois 1933). Um exemplo disso é a forma como uma pequena fração do capital é distribuída entre os trabalhadores na forma de profissões mais prestigiosas, como engenharia e administração, e embora essa fração não seja nada perto do que os capitalistas detém, ela garante melhorias significativas na vida do proletariado. Entretanto, a participação nesses cargos é restrita, e a segregação racial acaba funcionando como instrumento do proletariado branco para negociar sua ascensão.

Por um longo período, a literatura que buscava integrar marxismo e questões raciais partiu de uma discussão similar à de Du Bois, focalizando nas relações de trabalho e na reflexão sobre a “consciência cindida”. Franz Fanon, Aimée Césaire, Zora Neal Hurston contribuíram para a construção de um debate acerca dos processos de subjetificação, identificação e relações sociais engendrados pela violência do Atlântico Negro. Estes acabaram se tornando referências para outras linhagens do pensamento negro e dos debates antirracistas que não necessariamente se alinham com o marxismo.

Como fruto de um profundo debate político-intelectual a respeito da precedência do racismo em relação ao capitalismo[2], autorxs contemporânexs sugerem novas maneiras de compreender como ambos se co-constituem. Michael Ralph (2012), por exemplo, argumenta que antes que as pessoas abduzidas da costa Africana chegassem às Américas como propriedade privada, um longo e complexo processo lhes retirava a qualidade de humanidade e as inscrevia no mundo dos objetos. Uma das etapas para se produzir açúcar e algodão nas Américas e no Caribe era, justamente, levar a mão-de-obra até a terra. Esse transporte era extremamente caro e arriscado – do ponto de vista dos colonizadores brancos, obviamente – e vendo isso como oportunidade, uma fração dos capitalistas ingleses criou um novo mercado para assegurar bens de capital. A mensuração do valor da vida para as apólices de seguro nasceu, portanto, precisamente enquanto as vidas negras eram reduzidas a coisas. Os processos de privatização de um corpo e a transformação de humanos em coisas aconteceram, primeiramente, sob corpos negros, e esse momento funcionou como um laboratório para a reprodução desse tipo de abstração. Em outras palavras, não é coincidência que uma das primeiras formas de ativo financeiro tenha sido um corpo negro qua escravizado e destituído de qualquer humanidade.

Ao jogar luz sobre eventos que parecem insignificantes, como as negociações entre mercadores e seguradores, Ralph sugere uma dupla torção no pensamento marxista tradicional: a produção do racismo é coextensivo à produção do capitalismo – e não produto dele – ao mesmo tempo que o capital financeiro está na gênese do capital produtivo – e não é produto dele. A expansão do capital para uma nova fronteira – aquela da securitização que conhecemos hoje – presumiu a criação de pessoas objetificadas, enquanto a objetificação dxs negrxs escravizadxs presumiu mecanismos econômicos de precificação da vida.

A crise do subprime em 2008 nos Estados Unidos foi outro momento em que novos mecanismos de crédito construíram corpos negros como passíveis de uma série de opressões, e essa própria construção foi o substrato para a consolidação desses mecanismos de crédito e para a expansão do capital. Em um artigo intitulado “Bonded Life”, Zenia Kish e Justin Leroy (2015) traçam a história da criação dos empréstimos para as classes mais baixas nos EUA. Em um contexto de super acumulação, o capital precisa encontrar novos terrenos por onde se mover. Alguns designers de mercadorias financeiras criaram o subprime, uma forma de crédito para populações com pouca chance de honrar a dívida, mas que eram ativos plásticos, que os banqueiros podiam revender e passar adiante, jogando as dívidas dessas pessoas em um buraco sem fim de negociações abstratas. Muitas famílias hipotecaram suas casas, e quando haviam mais dívidas do que dinheiro para pagá-las, a bolha estourou e foram essas pessoas – e não as instituições financeiras – que perderam seus bens. Não por acaso, completam Kish e Leroy, as comunidades negras e latinas que foram o alvo do subprime, justamente aquelas que são historicamente concebidas como “sem casa” e “estranhas” ao território estadunidense.

A expansão de fronteiras do capital não pode ser, portanto, entendida como um processo abstrato. As formas do capital são, elas próprias, concretas em sua fundação, e nessa concretude encontramos dinâmicas sociais profundamente violentas e racistas. Rosa Luxemburgo já nos havia ensinado que a acumulação primitiva é extremamente produtiva: ela cria um “fora” que pode ser apropriado. A literatura sobre capitalismo racial examina justamente como esse “fora” é embebido em processos de racialização e generificação. Paula Chakravartti e Desine Ferreira da Silva (2012) criticam duramente a abordagem de David Harvey (2013) sobre acumulação por espoliação justamente porque esta deixa de fora os processos históricos e concretos da criação dos espaços e corpos a serem despossuídos. Elas nos lembram que marxistas esqueceram de observar como os objetos fagocitados pelo capital vieram a ser objetificados. Por exemplo, sabemos que a área que hoje chamamos de Brasil não era um vazio inabitado antes das chegadas de alguns navios portugueses, mas pouco sabemos sobre os processos socio-históricos que removeram (ou tentaram) as rugosidades e converteram esses espaços em solo fértil para o capital criar raízes no além-mar.

O debate contemporâneo acerca das relações entre raça e capitalismo toma uma direção um pouco distinta da reflexão de Du Bois, por exemplo, porque não olha apenas para a relação entre racismo e luta de classes. Autoras e autores contemporâneos defendem que o capitalismo é racializado em sua totalidade, de modo que, por um lado, raça não apareça apenas quando observamos dinâmicas de classes, e de outro, racialização e racismo não sejam epifenômenos de relações econômicas. A racialização dos corpos é central tanto para a dinâmica de classes, como principalmente para a expansão das fronteiras do capital. O racismo, portanto, não opera apenas como um aparato ideológico que mantém o capitalismo em movimento. O racismo é produzido e produtor do processo de acumulação.

Mulheres negras e a formação social do Brasil

No Brasil, o debate sobre a relação entre raça e classe foi capitaneado por pensadores como Florestan Fernandes e Clovis Moura, que argumentavam que a formação do capitalismo Brasil contemporâneo era racializada. Autoras como Lélia Gonzalez e pesquisadoras atuais, como Renata Gonçalves, somam à discussão sobre as continuidades entre racismo e capitalismo, e aprofundam-na ao trazerem questões de gênero para o centro do debate.

No dia 21 de julho de 2020, Renata Gonçalves fez uma fala intitulada “Intelectuais negras e os desafios da luta de classes no Brasil” a convite do nosso blog Marxismo Feminista. Nessa fala (que está disponível na íntegra aqui), Gonçalves parte da discussão sobre raça e classe e revela o quanto o debate sobre capitalismo racial também tem raízes bastante contundentes na realidade brasileira, ao argumentar que a formação do capitalismo brasileiro dependeu da objetificação e da negação de corpos de mulheres negras. Ou seja, a formação de uma sociedade de classes no Brasil não se deu em um espaço vazio, no dia seguinte à abolição da escravatura. Ao contrário, explica Gonçalves, as violentas dinâmicas de exploração ocorridas durante o período de escravidão no país precederam e moldaram as relações sociais no Brasil.

Gonçalves parte da crítica de Lélia Gonzalez a abordagens canônicas, como as de Caio Prado e Gilberto Freyre, por romantizarem a relação entre o senhor da casa grande e a mulher negra escravizada. Gonçalves sugere que a violência contra as mulheres negras escravizadas foi central na formação social do Brasil pois uma das principais formas de submissão eram as práticas de estupro e violência sexual, tanto para satisfazer as taras quanto para a geração de leite aos filhos destes senhores. Era nas relações sexuais violentas que o patrimonialismo brasileiro fincava suas bases. Em outras palavras, se o capitalismo brasileiro tem um caráter patriarcal, é preciso entender como esse patriarcado foi historicamente constituído. A objetificação das mulheres negras é central nesse processo, pois ela se dava em diversas camadas para que o senhor pudesse se tornar um sujeito econômica e socialmente dominante: a ciência e a medicina desumanizavam as mulheres negras escravizadas e tratavam-nas como fêmeas; ao serem escravizadas, elas economicamente se tornavam bens de capital e propriedade privada; ao serem estupradas, elas eram objetificadas sexualmente. Em suma, defende Gonçalves, a violência sexual moldou um contrato sexual racial, que, por sua vez, informa as relações de classe, raça e gênero que perpassam a sociedade brasileira contemporânea – o que também explica como às mulheres negras foram historicamente conferidos os espaços mais subalternos na sociedade.

Se existe uma literatura que propõe que o capitalismo é racializado porque sua produção e reprodução pressupõem e criam dinâmicas raciais e racistas, Renata Gonçalves, Lelia Gonzalez, Angela Davis, Denise Ferreira da Silva e tantas outras intelectuais negras combinam esse debate à questão de gênero. Não podemos esquecer que os corpos que foram precificados como bens de capital antes de chegarem ao Novo Mundo eram, também, sexualizados e generificados. No caso do Brasil, nos diz Gonçalves no vídeo citado acima, o patriarcalismo se erigiu ao jogar as mulheres negras para a multifacetada condição de objeto.

“As relações hoje das mulheres negras na nossa sociedade de classes guarda uma relação com nosso passado escravista, onde existia uma estrutura da família patriarcal atrelada à forma de organização da força de trabalho”.

Renata Gonçalves, 2020.

Se tem algo que o marxismo feminista negro faz de maneira exemplar é questionar dicotomias caras ao pensamento ocidental burguês, como particular e universal, abstrato e concreto, natural e social, lógico e histórico ao invés de tomá-las como ponto de partida. Raça e gênero só são categorias secundárias e ideológicas à medida em que são produzidas como tal para que o capital possa desfilar como universal. Não trazer raça e gênero para o centro do marxismo é, portanto, recair nas próprias armadilhas criadas por aquilo contra o qual lutamos.

Referências

Arruzza, Cinzia. 2015. “Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo”. Traduzido por Camila Massaro de Góes. Revista Outubro, no 23. http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/06/2015_1_04_Cinzia-Arruza.pdf.

Chakravartty, Paula, e Denise Ferreira da Silva. 2012. “Accumulation, Dispossession, and Debt: The Racial Logic of Global Capitalism—An Introduction”. American Quarterly 64 (3): 361–85. https://doi.org/10.1353/aq.2012.0033.

Du Bois, W. E. B. 1933. “Marxism and the Negro Problem”. Crisis Publishing Company.

Harvey, David. 2013. Os limites do capital. Traduzido por Magda Lopes. São Paulo: Boitempo.

Kish, Zenia, e Justin Leroy. 2015. “Bonded Life”. Cultural Studies 29 (5–6): 630–51. https://doi.org/10.1080/09502386.2015.1017137.

Ralph, Michael. 2012. “‘Life…in the Midst of Death’: Notes on the Relationship Between Slave Insurance, Life Insurance and Disability”. Disability Studies Quarterly 32 (3). https://doi.org/10.18061/dsq.v32i3.3267.

Robinson, Cedric J. 2000. Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition. 2nd edition. Chapel Hill, N.C: The University of North Carolina Press.


Notas

[1] Ana Flávia Bádue é doutoranda em antropologia cultural pelo The Graduate Center, CUNY, e mestra na mesma área pela Universidade de São Paulo. Atualmente pesquisa as conexões entre tecnologias digitais, empreendedorismo, investimentos financeiros e agronegócio. Além disso, também possui pesquisas na área de gênero, família e financeirização.

[2] Debate sistematizado por Cedric Robinson em Black Marxism (2000). Nota-se que tal debate guarda certa similaridade com aquele desenvolvido pelas feministas sobre a relação entre capitalismo e patriarcado. Ver, por exemplo, “Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo”, artigo em que Cinzia Arruzza (2015) sistematiza a questão.

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