o velho está morrendo e o novo não pode nascer

Resenha de O velho está morrendo e o novo não pode nascer, de Nancy Fraser

Daniela Costanzo

A Autonomia Literária traduziu para o português o novo pequeno livro de Nancy Fraser, O velho está morrendo e o novo não pode nascer, publicado originalmente como artigo na revista American Affairs, em 2019, e posteriormente lançado em livro pela editora Verso nos Estados Unidos. O livro traz uma espécie de análise de conjuntura da política norte americana acompanhada de entrevista com a autora realizada pelo editor e escritor Bhaskar Sunkara. A versão brasileira ganhou ainda um prefácio do professor Victor Marques.

Fraser busca entender a visão de mundo ocupada pelo “trumpismo”, que teria quebrado o bloco hegemônico existente até então – o chamado neoliberalismo progressista, que trataremos adiante. Utilizando vocabulário assumidamente gramsciano, a filósofa acrescenta outra ideia àquela de hegemonia de Gramsci: todo bloco hegemônico “incorpora um conjunto de valores e suposições sobre aquilo que é justo e correto e sobre aquilo que não é” (Fraser, 2020, p. 36). Esses valores têm sido, desde a metade do século XX, nos Estados Unidos e na Europa, distribuição e reconhecimento, aspectos que forjaram a hegemonia capitalista. Dessa forma, Fraser une suas já conhecidas reflexões às de Gramsci.

Com esse aparato, a autora argumenta que o bloco hegemônico antes de Trump foi o neoliberalismo progressista, junção das correntes liberais dos novos movimentos sociais – como feminismo, antirracismo, ambientalismo, etc. – com os setores mais dinâmicos da economia norte americana – Wall Street, Vale do Silício e Hollywood. Os valores deste bloco poderiam ser definidos como a junção de um “programa econômico expropriativo e plutocrático com uma política de reconhecimento liberal-meritocrática” (Fraser, 2020, p. 38). Esse bloco se valeu de movimentos progressistas da sociedade para difundir ideias superficiais de reconhecimento e igualdade que chegavam a alcançar, no máximo, indivíduos sub-representados dentro de uma mesma classe, como as feministas liberais cuja reivindicação era quebrar o teto de vidro que as impedia de alcançar o mesmo sucesso profissional dos homens brancos de sua classe.

Ficaram de fora dessa coalizão os remanescentes do New Deal: trabalhadores organizados, imigrantes, afro-americanos, classes médias urbanas e algumas frações do grande capital industrial) e o neoliberalismo reacionário, representado principalmente pelo Partido Republicano, o qual compartilhava valores com o neoliberalismo progressista – mais do que este deixava transparecer. Dessa forma, as vítimas da financeirização e da globalização corporativa ficaram sem um lar político natural.

Neste cenário, Trump e Sanders aparecem como populistas críticos ao neoliberalismo hegemônico. O primeiro, todavia, com ares nacionalistas, protecionistas e portador de uma retórica que Fraser chama de populismo reacionário – combinação de uma política hiper-reacionária de reconhecimento com uma política populista de distribuição -, programa não efetivado após as eleições devido ao estelionato eleitoral cometido por Trump. O que o novo presidente norte americano ofereceu no lugar de distribuição foi um neoliberalismo hiper-reacionário que não constitui um bloco hegemônico, ao contrário, é “caótico, instável e frágil” (Fraser, 2020, p. 53). Dessa forma, o neoliberalismo progressista deu as condições para que Trump nascesse enquanto alternativa política ao excluir uma parte importante da população. No entanto, essa alternativa apresentada por Trump não estabelece hegemonia, mas abre a possibilidade da criação de um bloco contra-hegemônico novo, de modo que a saída para se contrapor a essa situação não seria uma nova versão de um neoliberalismo progressista, até porque ele não teria condições de forjar um novo senso comum, dado seu desgaste – que justamente levou ao trumpismo. A saída possível e mais provável, segundo a autora, para se estabelecer um bloco contra-hegemônico, é o populismo progressista. Tal populismo teria a possibilidade de unir a classe trabalhadora e seria caracterizado pela combinação de redistribuição igualitária e reconhecimento não hierárquico.

A estratégia para essa disputa por meio do populismo progressista não deve ser, segundo Fraser, via condescendência moralizadora, como praticado pelo neoliberalismo progressista, dado que essa abordagem é superficial e deixa de perceber a profundidade das forças que sustentam o racismo, o sexismo, a homofobia, o machismo, a islamofobia, a transfobia, etc.

Assim, Fraser, nesta obra, coloca de pé, a um só tempo, uma análise da conjuntura política norte-americana, um caminho para as forças progressistas e o seu conceito histórico de neoliberalismo progressista – mencionado antes em textos menores da teórica. O exercício é corajoso, mas ficam algumas questões. Sanders poderia ser classificado como populista? O que significa esse termo tão usado ultimamente para todos os lados do espectro político? A autora parece associar populismo à representação das classes trabalhadoras na forma de distribuição, mas isso não fica claro no livro. Nós, cientistas sociais latino-americanas, sabemos da complexidade envolvida neste termo, que de forma alguma pode ser resumido à representação dos interesses dos de baixo ou a uma política de redistribuição.  

O grande acerto do ensaio, no entanto, parece ser seu diagnóstico de junção das forças do neoliberalismo progressista, o qual nos lembra da armadilha do feminismo liberal que podemos reconhecer aqui no Brasil também entre as forças aparentemente progressistas.

FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

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