
Resenha de Capitalismo em debate – Uma conversa na teoria crítica, de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi
Bruna Della Torre
A teoria crítica feminista contemporânea tem o rosto de Nancy Fraser. A partir de um diálogo crítico com Jürgen Habermas e Axel Honneth, foi ela a primeira a chamar enfaticamente a atenção para essa questão, que havia sido escanteada pelo Instituto de Pesquisa Social desde o seu nascimento. A pergunta a respeito do que era crítico na teoria crítica suscitou uma série de questões que permanecem em aberto. Na esteira de Fraser, Rahel Jaeggi, herdeira crítica de Honneth, tem buscado recuperar, de um lado, a leitura de Marx deixada em segundo plano por Habermas e Honneth e, de outro, o caráter ético-normativo da análise crítica recusado pela primeira geração da teoria crítica, principalmente, por Theodor W. Adorno. Ambas as autoras são profundamente influenciadas pelo conceito de “justiça” de John Rawls e, por isso, o debate relativo às “instituições” ocupa um lugar central na linha da teoria crítica na qual se inserem. Há uma questão de fundo que orienta a reflexão de ambas e que está ligada à tentativa de conjugar a compreensão materialista do capitalismo com uma compreensão do seu impacto em áreas não imediatamente econômicas. No livro Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica, essas autoras encontram-se para debater a conceitualização, a historicização, a crítica e a contestação do capitalismo.
O livro assemelha-se menos a um contraste de duas posições diversas a respeito do mesmo tema, conforme sugere a ideia de “debate” presente no título, e mais a uma entrevista, na qual Jaeggi pergunta e comenta e Fraser responde. O fio vermelho que conecta as reflexões presentes no livro é o diagnóstico comum às duas intelectuais de que vivemos uma profunda crise e que a principal tarefa do pensamento crítico atualmente é urdir uma “crítica da crise” (Fraser) ou uma “crítica da crise das formas de vida”, que recorra a um “vocabulário normativo-funcionalista” (Jaeggi, p. 37). Essa crise profunda diz respeito à incapacidade do capitalismo de entregar as suas promessas e ao seu fracasso em resolver os problemas de como se produz e se distribui a riqueza, ou seja, refere-se à crise ambiental, à desigualdade (econômica, bem como de gênero, raça e sexualidade) e à crise financeira – crise de acumulação que, na concepção das autoras, deixa claro os limites do neoliberalismo.
O caráter abrangente dessa crise teria igualmente acarretado uma mudança epistêmica na crítica marxista, com o impacto produzido pelo pensamento marxista negro e anti-imperialista, pela teoria feminista (especialmente, pela teoria da reprodução social) e pelo ecossocialismo, bem como pelo debate a respeito do “Antropoceno” a ele conectado. O momento em que vivemos, também do ponto de vista da crítica, seria um momento de reformulação e de reunião das “lutas de classes” com as “lutas de fronteiras”, combinando de maneiras várias o “econômico” e o “político”.
Tendo em vista algumas questões relativas ao marxismo feminista, o livro traz algumas contribuições interessantes. Talvez o capítulo de maior destaque do livro seja aquele no qual esse debate ocorre: “contestando o capitalismo”. Nele, Nancy Fraser defende a sua conhecida tese de que o neoliberalismo progressista seria responsável, em grande parte, pela ascensão da extrema-direita contemporânea. Essa tese, em linhas gerais, defende que o neoliberalismo só pôde se estabelecer enquanto política econômica regressiva porque adotou um verniz progressista. Isso teria feito com que as classes baixas e médias esmagadas por essa política econômica tivessem associado a ela o rosto das elites liberais, cosmopolitas, permeáveis até a página dois às questões de raça, gênero e sexualidade e cuja maior expoente seria Hillary Clinton. Grosso modo, a ideia é que o ressentimento dirigido às elites liberais e criado pelas políticas neoliberais aprofundou sentimento xenófobos, nacionalistas, LGBTQfóbicos, machistas e conservadores, isto é, conjugou tanto o ressentimento de classe, quanto o ressentimento de status das camadas médias e baixas. Formara-se, então, uma oposição entre protecionismo social reacionário e neoliberalismo progressista. Jaeggi interpela Fraser, em primeiro lugar, e contesta a tese do “backlash” e, aparentemente seguindo o argumento de Luc Boltanski e Éve Chiapello em O novo espírito do capitalismo, defende que a “liberalização cultural” das últimas décadas teve a ver com modificações mais profundas do capitalismo ligadas ao chamado “capitalismo cognitivo” e à maneira pela qual a criatividade e a inovação tornaram-se um requisito necessário à nova forma de acumulação. Ambas essas abordagens foram duramente e, muito corretamente, a meu ver, rebatidos por Melinda Cooper em seu livro Family Values: Between neoliberalism and new social conservatism. De qualquer forma, Jaeggi introduz ainda mais uma crítica a Fraser que interessa ao debate marxista feminista. Tendo em vista o argumento de que o ressentimento orientado por gênero e por raça seria materialmente orientado, Jaeggi recorre aos estudos do autoritarismo da Escola de Frankfurt, bem como à teoria da reprodução social, para defender que o racismo e o sexismo sempre foram um dispositivo de compensação não imediatamente econômica de homens (brancos) pela exploração material e pelas humilhações que sofriam no trabalho. Sendo assim, sua revolta atual estaria ligada justamente com a perda desse “privilégio” masculino ou de supremacia branca. O caráter autoritário partilhado pelos apoiadores de Trump, em vários estratos sociais diferentes, afirma Jaeggi, explicaria também a existência do ressentimento em setores que não são despossuídos ou impotentes em nenhum aspecto material mais imediato. O aprofundamento desse tipo de debate é essencial para enfrentar os problemas que estamos enfrentando no Brasil atualmente, por exemplo.
Para terminar, vale ressaltar um problema que percorre o livro. Profundamente preocupadas com o problema da justiça e das instituições e bastante influenciadas pela teoria de Karl Polanyi, as autoras recaem numa leitura dual e problemática de Marx. Jaeggi mobiliza a noção de “totalização do mercado”, seguindo Polanyi. Fraser tende a associar capitalismo e “circulação” e por isso acaba por dividir a vida social em zonas mercantilizadas (ou comodificadas) e não mercantilizadas. Segundo ela, “esta é a característica com maiores consequências e a mais perversa do capitalismo: a entrega dos assuntos humanos mais importantes ao mercado […] Em vez de serem tratadas como questões de discussão e tomada de decisão coletiva, são entregues a um aparato de cálculo de valor monetarizado” (p. 40). A centralidade do mercado como critério de “mercantilização” está ligada à necessidade, herdada de Habermas, de pensar as instituições como instâncias que não são governadas pelas normas do mercado. A ideia é que, embora forneçam a condições para a produção e troca de mercadorias, estas são organizadas em bases diferentes. Essa abordagem é necessária para sustentar a possibilidade de “justiça” defendida pelas autoras, mas entra em conflito com outra parte importante do livro, descrita a seguir.
Fraser defende a teoria unitária e acata em grande medida a teoria da reprodução social. Inspirada em Marx, essa teoria precisa recorrer à dialética e a um conceito ampliado de produção para compreender como esferas na qual o mercado não entra imediatamente – a esfera doméstica e o corpo feminino, por exemplo – são, na verdade, profundamente formatadas pelo capitalismo. Para tal, ela precisou superar uma concepção dualista que reflita sobre aquilo que está “dentro” e aquilo que está “fora” da lógica capitalista. Nesse ponto, a TRS converge curiosamente com a leitura de Marx levada a cabo por Adorno e seus companheiros da primeira geração da teoria crítica que refletiam a respeito do desdobramento das várias formas no capitalismo a partir de uma contradição que orientava a todas, a contradição do capital. Não há, por isso, como sustentar uma teoria da reprodução social e nem uma posição unitária recorrendo à noção dualista de “zonas comodificadas” e “zonas não comodificadas”, pois o mercado é apenas um dos elementos do capitalismo descritos por Marx e, embora seja fundamental, não pode servir como critério único de aferimento, como demonstram muito bem algumas feministas.
O livro traz ainda outros problemas, como a defesa de um “populismo progressista” e alguns elementos eurocêntricos (no começo do livro, as autoras afirmam que a crítica do capitalismo hat Konjunktur [tem conjuntura] – só agora?). Seja como for, levanta questões fundamentais e demonstra quantos desafios a teoria crítica tem de enfrentar para alcançar o presente.
FRASER, N.; JAEGGI, R. Capitalismo em debate. Uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020.

[…] […]
CurtirCurtir
[…] desejo de transformar tudo”, resenha do livro de Verónica Gago por Beatriz Rodrigues Sanchez.“Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica”, resenha do livro de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi por Bruna Della Torre.“O velho está morrendo […]
CurtirCurtir