‘black lives matter’ como política de identidade e luta de classes

Texto originalmente publicado no blog da American Philosophical Association (APA). Tradução de Giovanna Henrique Marcelino.

Vanessa Wills

“Papai mudou o mundo!”. Gigi Floyd, filha de George Floyd, sorriu amplamente enquanto gritava essa frase em voz alta em um protesto do Black Lives Matter, em Minneapolis – uma expressão poética da conexão entre luta particular e transformação universal. O pai de Gigi, George Floyd, havia sido assassinado pela polícia apenas uma semana antes, provocando indignação em massa e uma onda de organização antirracista.

Nas últimas semanas, os protestos do Black Lives Matter, precipitados pelo assassinato racista de George Floyd pela polícia, agitaram os Estados Unidos e encheram ruas e praças em todo o mundo. Os protestos mudaram rapidamente a consciência pública sobre o racismo e a brutalidade policial, e já trouxeram algumas mudanças concretas, como o anúncio do prefeito de Los Angeles, Eric Garcetti, sobre o corte de US$ 150 milhões no orçamento do Departamento de Política de Los Angeles (LAPD) e a resolução do Conselho Municipal de Minneapolis de dissolver completamente o departamento de polícia da cidade.

O slogan “Black Lives Matter” foi cunhado em 2013, depois que George Zimmerman foi absolvido de todas as acusações criminais pelo assassinato de Trayvon Martin, um adolescente negro desarmado que Zimmerman havia matado a tiros em 2012. Não era incomum naquele momento que aqueles que insistiam que vidas negras importam fossem desafiados a responder se não seria melhor, retoricamente, abandonar o particular e abraçar o universal – dizendo, ao invés disso, que “Todas as Vidas Importam”. Felizmente, esse tipo de crítica é muito menos comum agora, mas ainda nos restam questões sobre o significado de um movimento anti-racista florescer nos EUA e no mundo e como entender as relações entre os movimentos pela libertação de determinados grupos oprimidos e um movimento por um tipo de mundo radicalmente diferente. A questão é especialmente premente, já que as exigências de abolir a polícia, por exemplo, tornam cada vez mais claro que, para atender adequadamente às necessidades de determinados grupos oprimidos, será necessária uma mudança ampla, completa, sistêmica e radical.

Uma das maneiras pelas quais essas questões se manifestam é sob a forma de um debate entre “políticas de identidade”, de um lado, e marxismo e outras teorias “baseadas em classe”, de outro. As políticas de identidade abrangem uma ampla gama de intervenções teóricas e práticas que se fundamentam, e tomam como ponto de partida, a experiência vivida e os interesses de grupos formados por pessoas que compartilham categorias de identidade social. Exemplos de “identidades” nesse sentido incluem, mas não estão restritos, a gênero, raça, etnia, sexualidade e religião. As teorias baseadas em classe, por outro lado, defendem atividades políticas baseadas em interesses compartilhados por pessoas de diferentes gêneros, raças, religiões etc., com base em sua posição econômica na sociedade de classes. (Este é, por óbvio, um resumo necessariamente breve das duas orientações).

O conflito ideológico entre “políticas de identidade” e teorias marxistas ou teorias sobre opressão e exploração “baseadas em classes” aparece em vários domínios, e é especialmente predominante nas discussões acadêmicas e ativistas sobre as lutas de libertação de grupos oprimidos. Sabemos que as pessoas são discriminadas em todos os tipos de contextos com base nas características de sua identidade social. Vemos como as divisões sociais parecem ocorrer ao longo dessas linhas de fratura da identidade, marcando o que parecem ser conflitos de soma zero entre grupos opostos baseados em identidade (“preto versus branco”, “a batalha dos sexos”). E, no entanto, teorias de opressão “baseadas em classes” sugerem que membros de diferentes grupos baseados em identidade têm mais interesses em comum entre si com base em seu papel na produção econômica do que com membros de seu próprio grupo baseado em identidade que possam pertencer a uma classe econômica diferente.

Isso é bom (e, eu diria, bastante correto!) em teoria. Mas a abordagem baseada em classe pode obviamente parecer diretamente contrária a grande parte da experiência cotidiana vivida por muitas pessoas. Em um ambiente de trabalho racista, os colegas racistas brancos dificilmente parecerão aliados aos negros. Para uma mulher sistematicamente agredida em relacionamentos heterossexuais moldados por hábitos e mensagens sociais misóginas, dificilmente parecerá óbvio que ela possa encontrar aliados nos homens de sua classe. Certamente, também existem inúmeros exemplos de solidariedade da classe trabalhadora que moldam e constituem a experiência vivida aos quais podemos recorrer. Mas não há como negar que, quando assistimos à experiência vivida e às narrativas de pessoas oprimidas, o que claramente surge é testemunho de padrões de abuso que membros de grupos mais próximos do topo de hierarquias sociais baseadas em identidade infligem, às vezes com grande prazer, a pessoas posicionadas na parte inferior dessas hierarquias. Isso deve ser entendido.

Grande parte da filosofia acadêmica anglófona é notoriamente cética ou, de qualquer forma, profundamente ambivalente, sobre a prática de olhar para a experiência subjetiva vivida como fonte de conhecimento. Aparências, como todos sabem, e figuras como Sócrates ou Descartes fizeram o possível para nos mostrar, geralmente enganam. Mas o que se segue disso? Para alguns, o que se segue é uma espécie de fuga da materialidade para a pura abstração; distanciando-se do particular, e entrando no reino do ceticismo estritamente universal, dirigindo o ceticismo sobre a invocação do feminismo, da teoria crítica das raças e da teoria queer como quadros analíticos, e lançando dúvidas sobre suas pretensões de fazer parte da investigação filosófica propriamente dita. Aqueles de nós que obviamente têm interesse em alcançar a justiça social, porque ela é regularmente negada a nós com base em nossas identidades, muitas vezes somos olhados com suspeita sobre se poderíamos realmente ser acadêmicos “sérios” e objetivos, precisamente por isso.

Para os marxistas, existe uma longa tradição de pensadores como a filósofa Angela Davis (uma figura chave e fundadora do discurso abolicionista contemporâneo), W. E. B. Du Bois e, principalmente, o próprio Karl Marx, pensando criticamente as complexas relações entre identidades sociais subjetivamente experienciadas e relações de classe objetivas e econômicas. No entanto, ironicamente, um tipo similar de fuga da materialidade e da particularidade se manifesta em certas variedades de análises sociais “baseadas em classes”.

Marx escreve que o proletariado “possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito particular para si, porque não se comete contra ele nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples”. Parte do que fundamenta reivindicações normativas e descritivas feitas do ponto de vista da classe trabalhadora, na teoria marxista, é que a classe trabalhadora é uma classe “universal” porque é possível ter uma sociedade na qual ela seria a única classe econômica. De fato, essa é a receita de Marx para a abolição da hierarquia de classes e, portanto, da própria sociedade de classes. A consciência de classe da classe trabalhadora constitui, portanto, para Marx, uma perspectiva humana universal que pode ser compartilhada por todos.

Entendida apenas superficialmente, essa observação pode levar alguém a imaginar que o caminho certo para abordar a teoria e o ativismo político é ignorar os erros particulares cometidos contra subseções particulares da classe trabalhadora com base em identidades sociais que não são e talvez não possam ser universalizáveis para a classe como um todo. Mas isso seria um erro grave. Uma maneira melhor de pensar sobre o particular e o universal nesse contexto pode ser invocar o antigo slogan trabalhista: “Uma violência a um é uma violência a todos”. O universal se manifesta precisamente no particular. Não podemos ignorar o engajamento passado com instâncias específicas, particulares, vividas e concretas de opressão, se queremos alcançá-lo. Prestar atenção às múltiplas opressões e às maneiras como elas aparecem na experiência subjetiva vivida das pessoas que as suportam, nos dá uma visão de como um dia poderíamos acabar com a dominação de alguns seres humanos sobre outros, em todas as suas formas.

Se, como nós marxistas argumentamos, é necessária uma transformação econômica para produzir um mundo sem racismo, sexismo e outras formas de opressão baseadas em identidade, como pensamos nas conexões entre lutas contra a opressão baseada em identidade e a necessidade de um movimento contra a exploração baseada em classe? As conexões já estão lá – elas existem concretamente. Embora o slogan “Black Lives Matter” tenha ganhado ampla aceitação, hoje encontramos ceticismo e preocupações semelhantes sobre os apelos do movimento para abolir ou desinvestir na polícia. Os críticos argumentam que tais demandas obviamente exigiriam uma revisão e reestruturação completa e fundamental de toda a sociedade, e que essas demandas não podem ser alcançadas enquanto se deixe qualquer parte da sociedade existente exatamente como é. Mas este é precisamente o ponto. Marx escreveu que a atividade revolucionária era necessária não apenas porque era a única maneira de colocar o poder político nas mãos do povo, mas também porque é a única maneira de deixarmos para trás o pior que o capitalismo fez de nós, e forjar-nos de novo – melhores, menos egoístas, vendo que nosso florescimento individual está organicamente conectado ao florescimento de todos. Quando se trata dos oprimidos, demandas e lutas particulares pela libertação são, em última análise, apenas vencíveis quando ligadas à uma luta comum pela transformação social universal.

Foi no início de 2019 que minha amiga Kate Doyle Griffiths, uma antropóloga radical sediada em Nova York, no Brooklyn College, me procurou para perguntar se eu estaria interessada em ajudar a lançar uma nova revista marxista e interdisciplinar. Como qualquer professora adjunta atormentada em período probatório, encontrei-me encarando através do olho de minha mente o mesmo ábaco mental que surge sempre que penso em assumir um novo papel e responsabilidade.

Uma característica curiosa de como conheci minha agora co-editora, Griffiths, é que, embora sejamos ambas acadêmicas, não nos encontramos no contexto acadêmico. Na verdade, nos encontramos em um espaço destinado a mulheres e pessoas não binárias para reunir, lamentar e compartilhar histórias e conselhos pessoais. Conversas sobre orientação e expressão sexual, racismo, misoginia, limites pessoais, trabalho emocional e teoria queer floresciam diariamente. Portanto, embora possa parecer improvável a princípio, talvez fosse natural que, à medida que as conversas se voltavam para pensar sobre as conexões entre nossas experiências cotidianas e as dinâmicas sociais e políticas mais amplas que moldam e dão origem a elas, pontos em comum políticos surgissem e alianças se formassem.

Pareceu um pouco imprudente da minha parte, mas, no final, eu disse “Sim” e alegremente me juntei aos meus companheiros para criar o Spectre Journal. Spectre é um periódico bianual e interdisciplinar de teoria, estratégia e análise marxista. Nosso conselho editorial está unido em torno do nosso compromisso com o pensamento e ativismo marxista revolucionário, e na visão de que a análise marxista deve abordar diretamente questões de opressão baseada em identidade e é inadequada e incompleta sem elas. Na verdade, as lutas contra essas opressões são uma preocupação central. Vários de nossos editores – Tithi Bhattacharya, Cinzia Arruzza (filósofa na New School for Social Research), Kate Doyle Griffiths, Holly Lewis (filósofa na Texas State University) e David McNally – são conhecidos em grande parte por seu trabalho em “teoria da reprodução social”, um ramo do feminismo marxista que interroga as formas pelas quais as identidades sociais e opressões baseadas em identidades são moldadas nos, e por meio dos, processos capitalistas, moldando-os também, por sua vez. Em meu próprio trabalho, penso extensivamente sobre as relações entre raça e classe (como meus co-editores Zachary Levenson e Charles Post), e cada vez mais, nos últimos anos, sobre raça, gênero e classe. Meu interesse por estas questões têm muitas fontes e minha localização social como mulher negra da classe trabalhadora é uma delas.

Perguntada recentemente sobre o que os filósofos contribuem para o mundo, tive a oportunidade de refletir sobre o quanto a filosofia pode oferecer à uma teorização que ajuda a promover a causa da emancipação humana. As discussões sobre o particular e o universal, o ideal e o material, o abstrato e o concreto, o natural e o social, todas se enquadram diretamente em nosso domínio, e todas, acreditem ou não, são absolutamente necessárias para entender o atual momento, para ajudar os outros a entendê-lo e a intervir o mais efetivamente possível no interior dele. O treinamento filosófico nos fornece ferramentas para interpretar e mudar o mundo. Quanto mais profundamente nos envolvemos intelectualmente com a realidade vivida e concreta, mais efetivamente podemos colocar essas ferramentas para trabalhar tanto na teoria quanto na prática

Vanessa Wills é filósofa e ativista. É professora assistente de filosofia na Universidade George Washington. Especialista em moral, filosofia alemã do século XIX e filosofia de raça.

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