Entrevista com Melinda Cooper

Bruna Della Torre
Melinda Cooper é uma teórica social e política que reside na Austrália. Ela obteve seu doutorado na Universidade de Paris VIII em 2001 e leciona atualmente na Australian National University. É autora do livro Family Values: Between Neoliberalism and the New Social Conservatism (2017) e atualmente trabalha num livro sobre finanças públicas neoliberais.
Você é uma intelectual que traz as categoriais de raça e gênero para o centro da análise marxista. Você poderia nos contar um pouco sobre a sua trajetória acadêmica?
Minha trajetória não é muito linear, porque, em parte, sou eclética nos meus interesses, mas também devido à realidade do trabalho acadêmico. Eu trabalhei por muito tempo sob contratos temporários de pesquisa e ensino em várias áreas, então adotei uma abordagem muito transdisciplinar. Minha formação foi nas humanidades – eu me interessava por filosofia política francesa e italiana, especialmente pela convergência entre Deleuze e Guattari e o marxismo autonomista italiano, que eu estudei na França sob a supervisão da filósofa feminista Françoise Duroux. Eu me interessava muito pelo modo como Deleuze e Guatarri situavam a questão da genealogia na obra de Marx, embora eles não fossem particularmente teóricos feministas. Eu voltei então para a Austrália e para a Inglaterra por alguns anos e me tornei muito mais cientista social, focando-me nas ciências biomédicas e na indústria farmacêutica, sempre com ênfase no período inaugurado a partir de 1970, que coincidiu com a passagem do capitalismo keynesiano fordista para o capitalismo pós-keynesiano ou neoliberal. Sempre me pareceu que as intersecções entre raça, classe e genêro eram centrais nesse período transicional e, portanto, centrais para a compreensão do nosso momento “neoliberal” atual, mas levou certo tempo para que eu pudesse conceitualizar isso. Acho que, a longo prazo, foi por meio da reflexão a respeito do bem-estar social – seus limites e possibilidades – que eu consegui conjugar meus primeiros interesses conceituais em torno do marxismo e a questão da genealogia com uma abordagem mais historicamente informada do momento presente.
No seu livro mais recente, Family Values: Between Neoliberalism and New Social Conservatism [Valores familiares: entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo], você defende que “seria um equívoco pensar que o neoliberalismo está minimamente menos interessado na família do que os conservadores” e que estamos atualmente vivenciando o resultado de uma convergência entre a política neoliberal e a política neoconservadora. Como isso se deu? Quais foram os principais vetores desse processo?
Num primeiro nível, neoliberais querem reduzir todas as relações sociais à relação de contrato privado, ou seja, monetizar tudo que foi mantido fora do mercado sob a divisão fordista do trabalho, na qual o trabalho das mulheres no interior da unidade familiar não era diretamente remunerado. Isso fica mais claramente demonstrado pela “nova economia doméstica” de Gary Becker, que abrangia a criação de mercados do amor, rins, bebês adotados, etc. Os neoliberais quiseram submeter, por extensão, também os “serviços humanos” sob o Estado de bem-estar social à lógica do mercado – daí a pressão para privatizar ou descontratar serviços do Estado de bem-estar social ou substituir escolas públicas por vouchers escolares. Mas havia uma tensão aí. Enquanto desmanchavam o Estado de bem-estar social, os neoliberais também esperavam que muitas das funções de cuidado previamente exercidas por esse Estado fossem assumidas pelas famílias, na maioria das vezes pelas mulheres.
As mulheres carregaram o fardo dessa contradição sob o neoliberalismo. Ao mesmo tempo em que era esperado delas que trabalhassem fora de casa por um salário direto, esperava-se que elas continuassem a trabalhar em casa sem salário nenhum – uma contradição que só pode ser “resolvida” por meio da falência de um ou de outro, ou pela delegação de parte desse trabalho à mulheres mais pobres. Por essa razão, neoliberais investem muito na ideia de “responsabilidade familiar” – por meio da qual eles designam a responsabilidade não-remunerada das unidades domésticas privadas de assumir riscos, prover cuidados de saúde, pagar pela educação das crianças e cuidar dos idosos. A diferença entre isso e o sistema de assalariamento familiar do fordismo é que os Estados neoliberais não subsidiam a delegação das “funções de bem-estar social” por meio do salário masculino “ganhador do pão”. O neoliberalismo reforça, de várias formas, relações maritais e familiares, especialmente no que se refere à renda e aos ativos dos pobres – da mesma forma como o paternalismo fordista fazia, mas sem os subsidiar por meio do mecanismo redistributivo do salário masculino.
Neoliberais e neoconservadores estabelecem uma relação de colaboração a partir da questão da “responsabilidade familiar”. As duas perspectivas precisam reforçar as obrigações não-contratuais da família de alguma forma, embora por diferentes razões: para os neoliberais, a família atua como uma alternativa necessária ao Estado de bem-estar social e como lastro do livre mercado, enquanto para os neoconservadores, a família é o fundamento inquestionável da ordem social. Neoliberais tendem a ser muito menos normativos no que se refere ao tipo de forma familiar que precisa ser reforçada (monogâmica ou não, “legitimada” pelo casamento ou não, heterossexual ou outra), enquanto os conservadores estão particularmente interessados num tipo específico de família. A convergência não é perfeita, mas foi forte o suficiente para aproximar neoliberais e neoconservadores em torno da revolução Reagan e desde então essa aliança tem sido o pilar da política social democrata e republicana nos Estados Unidos.
Essa é minha interpretação das razões “lógicas” da convergência entre neoliberealismo e neoconservadorismo. Na prática, é difícil encontrar um neoliberal ou conservador como tipos ideais; com exceção da academia, muitos neoliberais também são conservadores e não vivenciam isso como uma contradição intelectual. Geralmente, essa convergência atravessa divisões políticas e partidárias. O “comunitarismo” do presidente Clinton foi igualmente uma forma de conservadorismo e ele obteve mais sucesso que Reagan em implantar políticas de promoção do casamento como parte da reforma do bem-estar social.
À propósito, há um corolário histórico importante no que se refere a esse argumento cuja implicação é a de que frequentemente interpretamos equivocadamente a natureza do liberalismo do livre mercado ou do laissez faire tal como existiram no passado. O princípio da “responsabilidade familiar” foi parte importante da tradição das “Poor Laws” na Inglaterra no século XVII e foi integrado posteriormente no liberalismo clássico como uma forma de disciplinar os pobres e os não-assalariados. Apesar disso, a teoria política, mesmo à esquerda, focada apenas no individual, esquece recorrentemente esse detalhe e retrata o liberalismo clássico como um regime de “responsabilidade pessoal”. Sem dúvida, o liberalismo econômico sempre dependeu do princípio da “responsabilidade familiar” e sempre teve uma relação de colaboração com o conservadorismo.
Em Family Values, encontramos uma crítica à esquerda que distingue “as boas demandas por distribuição” e as “más ou menos necessárias políticas da identidade” ou “a crítica estética ao capitalismo”. Um dos objetivos do seu livro, corrija-se se eu estiver errada, é demonstrar o quão dualista e não-dialética é essa visão dos movimentos feministas e antirracistas da década de 1970. Por que você acha que isso ainda está presente na esquerda? Seria isso um problema teórico ou político? Seu argumento também contradiz alguns discursos no âmbito da esquerda, como o de Nancy Fraser (isso também está presente no livro Feminismo para os 99%), que defendem a ideia de que o neoliberalismo é progressista e o neoconservadorismo é regressivo. Quais são as consequências políticas e estratégicas desse tipo de análise?
Nos últimos anos, parte da esquerda marxista tem trabalhado muito para convencer as pessoas que tudo deu errado porque a esquerda começou a pensar seriamente sobre raça e gênero, que eles caracterizam como uma política identitária frívola. Alguns vão além e defendem que qualquer tipo de política crítica em torno de gênero e de sexualidade é tendencialmente capitalista ou neoliberal. Por exemplo, uma crítica recente de Foucault tem identificado a sua inquestionável ambivalência em relação ao neoliberalismo como algo intimamente conectado com a sua característica queer [queerness]. Ironicamente, a consequência aqui parece ser a de que o projeto socialista implica numa restauração normativa da forma familiar que prevaleceu sob o capitalismo fordista.
Nancy Fraser desenvolveu uma versão marxista-feminista auto-consciente dessa crítica, que defende que o feminismo dominante foi cúmplice da ascensão do neoliberalismo porque cedeu à derrota do salário familiar fordista. Eu vejo a atitude de Fraser como parte de uma tendência mais geral, no interior de algumas correntes da teoria da reprodução social, na direção de uma posição feminista de tipo maternalista. O resultado parece ser que, ao demolir o salário do ganha-pão masculino, o feminismo contribuiu para uma desvalorização do trabalho de cuidado das mulheres e para minar a própria maternidade. O que eu acho problemático no argumento de Fraser é um retorno de uma posição normativa em torno do trabalho de cuidado das mulheres. O trabalho das mães sempre foi ao mesmo tempo supervalorizado e subpago. As mulheres não cessaram de realizar a maior parte do trabalho de cuidado não remunerado, mesmo quando trabalham fora de casa, então, certamente a questão não é revalorizar ou subsidiar esse trabalho na sua forma atual, mas colocar em xeque a divisão generificada do trabalho do cuidado entre “mães” e “pais” em primeiro lugar. Da maneira como eu a leio, a nostalgia de Fraser pelo salário familiar fordista impede um questionamento minucioso dessa divisão do trabalho generificada, mesmo enquanto avança no âmbito da meta socialista de remunerar o trabalho do cuidado.
A análise do programa AFDC em seu livro mostra que um dos maiores pontos de convergência entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo tinha a ver com a re-privatização do bem-estar social e com a transferência da responsabilidade pela reprodução (entendida num sentido amplo) do Estado para a família. Você também demonstra que os neoliberais, no contexto da crise do HIV nos anos 1980, defenderam o casamento gay como uma forma de responsabilização familiar, ou seja, como uma forma de transferir os custos do tratamento médico de pessoas infectadas pelo vírus, do Estado para as famílias. Que tipo de política no que se refere ao Estado devemos defender para não cair na armadilha da nostalgia fordista?
Bom, é complicado, porque acho que devemos lutar com certeza por maiores gastos públicos em saúde, educação e bem-estar social. Não acho que possamos prescindir de uma política fiscal radical na esquerda. A tradição revolucionária clássica não nos ajuda muito aqui, pois grande parte dela ocorreu antes da redistribuição de renda em massa promovida pelo Estado fiscal do século XX e os marxistas têm, com razão, sido céticos no que se refere à possibilidade de recuperação que acompanha a seguridade social. Acredito, todavia, que muitas das lutas da década de 1970 desenvolveram uma política fiscal revolucionária que empurrou o Estado keynesiano para além de seus limites. E há algo que podemos aprender com isso. O economista polonês Michael Kalecki foi muito visionário nesse aspecto: ele previu que a expansão dos serviços públicos e dos salários sob o keynesianismo iria acabar ameaçando o consenso corporativista entre capital e trabalho e acabaria eventualmente sendo rejeitado pelos interesses financeiros e dos negócios. Mas acho que podemos ir além de Kalecki e argumentar que o ponto de ruptura ocorreu quando as mulheres, imigrantes e minorias raciais contestaram suas posições no interior do contrato social fordista.
Atualmente, estamos vivendo as consequências da reação [backlash] ao Estado de bem-estar social keynesiano e, por isso, é tentador para algumas pessoas na esquerda simplesmente querer retornar a esse estado. E é provável que, se qualquer concessão do Estado ocorrer a esta altura, isso envolverá grandes esforços para limitar quem é elegível para as políticas de bem-estar social e quais formas de parentesco serão subsidiadas. Isso já é visível na maneira como alguns governos estão organizando as políticas públicas e os subsídios salariais durante a crise da COVID-19. Na Austrália, por exemplo, os serviços de cuidado infantil foram os primeiros a perder seus subsídios; trabalhadoras perderam suas rendas de forma desproporcional e imigrantes com vistos temporários foram deixados sem apoio governamental algum. Você pode ter certeza que qualquer tipo de retorno ao salário social será condicionado por algum tipo normativo de forma familiar. Há muitos pontos de pressão que poderiam ser explorados de maneira útil se quisermos evitar que algo assim ocorra e empurrar o Estado em outra direção. O ponto de pressão mais óbvio advém do caráter generalizado da crise. A COVID-19 talvez seja nossa primeira crise dos ecossistemas – uma contaminação viral que fez com que todo o sistema econômico se tornasse obsoleto. Sendo assim, todo mundo está implicado e setores inteiros da população trabalhadora foram levados a uma situação de dependência em relação ao Estado de bem-estar social. Isso gera um precedente novo e mais amplo para o apoio estatal à renda e dificulta a criação de distinções – detestáveis – entre os pobres merecedores e não merecedores e, portanto, entre as relações de parentesco merecedoras e não merecedoras da política social. O segundo ponto de pressão vem do perigo de deixar qualquer setor da população superexposto ao contágio. Trabalhadores que não são cidadãos ou trabalhadores sexuais, por exemplo, tornam-se uma ameaça a todos se não forem incluídos nas medidas de saúde pública. Ademais, há também a absoluta força do dissenso radical, como estamos vendo em torno do Black Lives Matter, que acredito ter tanto a ver com as desigualdades laborais e de saúde reveladas pela COVID-19, quanto com a violência policial. Nos Estados Unidos, a palavra de ordem “desfinancie a polícia” [defund the police] tem sido acompanhada por propostas de refinanciar a saúde pública e os serviços de educação.
No que se refere ao conservadorismo, você também discute o “bem-estar social baseado na religião”. O que é isso? Qual é o papel desempenhado pela religião na ascensão da extrema-direita hoje em dia? Uma parte da esquerda ainda é muito reticente no que se refere à crítica da religião, que é, aliás, uma pauta clássica do marxismo. Há sempre o medo da armadilha do elitismo, mas o papel desempenhado pela religião, principalmente no âmbito do gênero, parece decisivo atualmente. No Brasil, temos agora um “Ministério da família” e nossa ministra defende políticas como “abstinência sexual até o casamento”, entre outros disparates. Será que a nova esquerda feminista marxista deve retomar a crítica da religião?
A esquerda marxista e feminista precisa de uma crítica da religião pela mesma razão que sempre precisou de uma crítica do Estado-nação. As duas são formas de organizar a reprodução da vida social e a divisão sexual do trabalho ao impor uma ordem coletiva de parentesco e descendência e ao defender os seus limites. Enquanto o nacionalismo falou historicamente a língua da diferença racial, étnica e biológica, a comunidade religiosa fala a língua da ordem divina e da fé. As linhas divisórias nunca são, em vários aspectos, explícitas, mas a religião absorveu o Estado-nação na forma em que a genealogia coletiva é imaginada atualmente. Não é que o nacionalismo esteja morto (muito pelo contrário), mas mesmo os nacionalismos contemporâneos tendem a falar o idioma da tradição religiosa, com o fito de distinguir a si mesmos de um nacionalismo alternativo ou anterior visto como contaminado pelas forças do secularismo, do socialismo ou do desenvolvimentismo, dependendo do contexto. Daí a transição do socialismo na Europa Central e Oriental ter assistido a ascensão de novos nacionalismos religiosos, o pan-arabismo e o Estado desenvolvimentista ter entrado em declínio no Oriente Médio e o fundamentalismo islâmico ter emergido no norte da África. Também estamos testemunhando o cristianismo pentecostal e carismático difundirem-se na África sub-saariana e na América Latina. A emergência do neoliberalismo nos Estados Unidos é inseparável da criação da “nova direita religiosa” e hoje essa facção tem uma participação muito forte na administração Trump, por meio do Council for National Policy [Conselho para a Política nacional], mesmo que Trump não seja, ele próprio, muito religioso.
Essa mudança política é tão forte que mesmo um país como a Austrália, que é com frequência considerado secular (equivocadamente, na minha opinião) teve, nos últimos tempos, dois primeiros-ministros consecutivos advindos da direita religiosa: o primeiro, um católico ortodoxo que se opõe ao aborto e ao casamento de mesmo sexo; e o segundo, um pentecostal negacionista da mudança climática que é obcecado por introduzir leis de “liberdade religiosa” que iriam derrubar a maior parte das proteções básicas contra discriminação no ambiente de trabalho. O caráter geral dessa mudança só pode ser explicado se considerarmos a transformação material do social que ocorreu durante esse período. Em países como os Estados Unidos e a Austrália, o projeto neoliberal de desfinanciar a esquerda [defunding the left], por meio da interrupção dos fluxos de fundos públicos para instituições progressistas ou simplesmente seculares, foi acompanhado pelo esforço paralelo de redirecionar o dinheiro público para instituições ou prestadores de serviço religiosos (escolas, hospitais, etc). O problema aqui não é apenas que esse processo confere às organizações religiosas o controle imediato sobre sujeitos sociais, mas também a crescente influência de partes interessadas de natureza religiosa na constituição de decisões sobre política pública e a crescente parcela dos empregos de serviço social que recaem sob a autoridade da igreja. Esse é o contexto no qual os tribunais e governos no mundo todo introduziram os novos projetos de “liberdade religiosa” que visam anular leis que previnem discriminação de gênero e de sexualidade. E eu acredito que esse é igualmente o contexto mais amplo de ascensão da extrema-direita religiosa.
A extrema-direita assume hoje em dia várias formas e frequentemente encontramos divisões no movimento geral de direita. Algumas correntes se concentram mais na diferença étnica e religiosa – daí o ódio aos muçulmanos em particular, mas também aos coptas, hindus, curdos, judeus, ciganos e outros, dependendo do contexto. Mas a extrema-direita religiosa, em particular, está muito concentrada no gênero e sexualidade e aqui encontramos fortes traços comuns entre comunidades étnicas e religiosas. Acho que a esquerda tem estado menos disposta em desenvolver uma crítica da e em oposição à extrema-direita religiosa, porque leva essas questões menos a sério que a xenofobia. Uma grande parte da esquerda, na minha opinião, compartilha o pressuposto de que a regulação de raça e de gênero é um problema doméstico que pode ser resolvido em casa. O problema com essa posição é que muitos fundamentalismos religiosos estão sendo eles próprios ativamente organizados de maneira transnacional há vários anos. O movimento global contra a ideologia de gênero – que conjuga católicos, protestantes evangélicos, judeus ortodoxos e muçulmanos conservadores – é um exemplo proeminente disso, mas só um exemplo entre muitos.
A extrema-direita atual é menos excepcional do ponto de vista histórico do que pensamos. A extrema-direita católica, por exemplo, desempenhou um papel muito importante no começo do século XX na Europa, em países como França, Bélgica, Romênia, Espanha e Portugal, mas sua política de gênero não é frequentemente incorporada na tipologia do fascismo europeu. Eu desconfio que isso seja uma espécie de “vista grossa” da literatura histórica mais do que qualquer outra coisa.
Com relação ao papel da religião na esquerda latino-americana, eu gostaria de saber o quão progressista a teologia da libertação foi no que se refere às liberdades reprodutivas das mulheres e à homossexualidade. Os marxismos cristãos que eu conheço não foram muito avançados nesses quesitos – eu os caracterizaria como socialismos conservadores ou maternalistas – mas não sou uma especialista no assunto, então, gostaria de saber mais.
É muito importante ressaltar o argumento “anti-elitista” que você comenta na pergunta, uma vez que ele é utilizado constantemente como um pretexto para empatizar com a extrema-direita de uma forma ou de outra. Eu desconfio que quando as pessoas usam esse argumento elas estão sendo condescendentes ou utilizando “outros vulneráveis” imaginários como álibi para suas próprias preferências políticas. É um tipo de reacionarismo por procuração. O fato é que, assim como não há nada na opressão que predisponha as pessoas a praticar uma política de esquerda – ou de direita, aliás –, a ideia de que “o povo” é de alguma forma mais xenófobo ou fundamentalista que a elite não faz sentido para mim. Dito isso, um anticapitalismo feminista talvez seja sempre uma posição muito desafiadora, uma vez que tem de ser intransigente tanto em relação à família e à religião quanto o é em relação à nação, enquanto a maioria dos marxismos vai procurar algum tipo de fundamento genealógico ou acomodação “privado” para a primeira questão.
Você critica a teoria da reprodução social. Como o seu livro dá conta dos problemas que você vê nessa teoria?
Eu aprendi muito com as várias correntes da teoria da “reprodução social” e acho que esse termo é com frequência utilizado de maneira bastante imprecisa, então é difícil fazer uma crítica que não acabe ignorando muitos trabalhos importantes. Minha preocupação, no entanto, é que marxistas feministas utilizam o termo de forma recorrente como uma descrição autoevidente não do que as mulheres “fazem”, mas como o valor fundamental do trabalho das mulheres. No fim das contas, não creio que o termo “reprodução” possa ser desentrelaçado das suas associações históricas com as teorias do século XIX de hereditariedade legal e biológica. E quando olhamos para o modo como Marx utilizava esse termo quando se referia à reprodução do trabalhador, ele está sendo bastante prescritivo em relação à importância do salário ganha-pão masculino para o movimento da classe trabalhadora. Como tal, acredito que faria sentido re-empregar o termo “reprodução social” como um alvo, mais do que como ponto de partida para a crítica feminista. Longe de oferecer uma fundação à nossa política crítica, reprodução é mais bem compreendida como o princípio abstrato que organiza tanto a transmissão vertical da riqueza – nas formas genealógicas da família, raça e nação – quanto a divisão horizontal do trabalho, baseada na raça, na classe e no gênero. Em outras palavras, reprodução é o que estrutura a intersecção de raça, classe e gênero.
Essa é uma abordagem que muitas feministas desenvolveram. Refiro-me a teóricas interseccionais como Nira Yuval-Davis, em Gender and Nation e a Between Woman and Nation: Nationalisms, Transnational Feminisms, and the State, livro organizado por Minoo Moallem, Caren Kaplan, and Norma Alarcón. No entanto, assas abordagens frequentemente não são integradas a uma análise marxista do capitalismo e eu acho que há espaço para isso, se consideramos “reprodução” como referindo-se a qualquer estrutura legal, institucional ou cultural a partir da qual a propriedade pode ser transmitida. A transmissão vertical de propriedade por meio de família, nação, raça, etc. foi um ponto-cego no pensamento de Marx, mas está implícita na sua análise do capitalismo como “desterritorializante” e “reterritorializante” (para emprestar a leitura de Deleuze e Guattari dos Grundrisse).
Para terminar, como você vê a ascensão da extrema-direita hoje? Alguns falam de fascismo ou neofascismo e uma parte importante da esquerda discorda. Qual é a sua opinião sobre isso?
Acho que precisamos distinguir entre fascismo como uma forma estabilizada de Estado (havia poucas na metade do século XX – Alemanha, Itália, Espanha e Japão) e o fascismo como movimento e tendência, que tem sido um fenômeno bem mais abrangente. Eu não tenho problema nenhum em utilizar a palavra “fascista” para caracterizar os movimentos que estão aí. Esses são conservadores revolucionários – movimentos que combinam um levante revolucionário contra a ordem política estabelecida com o objetivo de implantar uma nova ordem social radicalmente reacionária. Isso não significa que estamos vivenciando fascismos estatais completos. Trump foi bastante longe na desconstrução do Estado administrativo por meio de expurgos de funcionários não leais a ele – algo que a nova direita americana defendia desde os anos 1970. Ele foi mais longe que qualquer um pensou ser possível em reunir o Partido Republicano em torno de si e desrespeitou as leis anticorrupção ao borrar as linhas entre as empresas Trump e seu gabinete presidencial. Ele ganhou o apoio da extrema-direita supremacista branca e das mílicias cristãs. Isso chega bem perto do fascismo de Estado. Mas como os protestos Black Lives Matters têm demonstrado, ele falhou em recrutar os militares e a guarda nacional. Mas como sabemos, Trump não é o único líder fascista por aí.

[…] autoras contemporâneas como Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya, Susan Ferguson, Silvia Federici e Melinda Cooper vêm retomando a temática da reprodução social como locus privilegiado para entender os caminhos […]
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MARAVILHOSA.
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