
Giovanna Marcelino
Marxismo e feminismo possuem uma trajetória bastante entrelaçada. Por um lado, feministas de diferentes gerações encontraram no trabalho de Marx e Engels fundamentos para compreender as especificidades da opressão das mulheres. Apesar destes autores não terem elaborado propriamente uma teoria sobre essa questão, é inegável o quanto eles desenvolveram um quadro conceitual e um método bastante útil para a reflexão sobre a condição feminina. Além disso, pode-se dizer que tal tema não fugiu à própria obra destes autores, tendo se tornado, na verdade, uma constante na história da tradição marxista e do pensamento socialista desde o final do século XIX. Em passagens do Manifesto comunista e do Capital, por exemplo, Marx já se atinha de maneira bastante crítica ao ideal de família e casamento burguês, bem como às atrocidades da exploração do trabalho feminino e infantil, tendo em vista as péssimas condições de trabalho as quais mulheres e crianças estavam submetidas no momento em que foram empregadas como mão-de-obra barata no cenário da industrialização. Da mesma forma, Engels se preocupou com o processo histórico de subordinação da mulher na formação da estrutura da família monogâmica em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, e Bebel, um dos líderes do Partido Social-Democrata alemão, foi autor de A mulher e o socialismo, um dos livros mais lidos entre os socialistas no final do século XIX, fundamental para evidenciar a centralidade da discussão sobre a emancipação da mulher naquele momento.
Por outro lado, é bastante notório que nem Marx, Engels ou Bebel desenvolveram uma abordagem completa sobre a questão de gênero, ou mesmo sobre a relação mais profunda que o problema da opressão da mulher viria a guardar com o próprio desenvolvimento do capitalismo, e com a luta contra ele, ao longo do tempo. Um exemplo bastante emblemático disso está no tema da reprodução social, que tem sido bastante revisitada pelas feministas nos últimos anos. Segundo essa leitura, Marx, apesar de ter destacado de maneira bastante notória a centralidade da categoria força de trabalho para a reprodução do sistema capitalista e produção de mais-valia, não chegou a explorar um problema de igual importância – como essa “mercadoria especial” é produzida e reproduzida? Nesse sentido, embora tenha se preocupado em descrever a situação das mulheres de sua época, condenando a moralidade burguesa e as condições sob as quais se deu a entrada da força de trabalho feminina na esfera produtiva e no trabalho fabril, acabou não explorando um elemento fundamental: o fato de que o trabalho reprodutivo que elas historicamente desempenham no lar, devido à divisão sexual do trabalho, na verdade constitui um dos pilares da acumulação capitalista e uma das bases do trabalho assalariado, ao garantir a reprodução diária e geracional da força de trabalho que a sociedade capitalista precisa para se reproduzir.
Nesse sentido, pode-se dizer que as feministas, tendo como ponto de partida a obra de Marx, foram um pouco além dele: mostraram que, além de terem se tornado uma parcela fundamental do trabalho produtivo ao longo do tempo (especialmente como o processo de “feminização do trabalho”), as mulheres (sobretudo negras e imigrantes) são responsáveis pelas atividades ligadas à esfera reprodutiva – procriar, preparar comida, lavar roupa, criar os filhos, cuidar dos idosos etc. – que são, por sua vez, essenciais para a manutenção da vida e para a reprodução da força de trabalho, sem a qual não existiria desenvolvimento capitalista. E essa foi uma descoberta que provocou inovações tanto teóricas (com a formação de uma nova agenda de pesquisa que aprofundou os estudos sobre a compreensão da opressão feminina, bem como sobre o próprio funcionamento do capitalismo), quanto políticas, já que destacou como as mulheres não apenas são uma parcela importante da classe trabalhadora e uma das frações mais exploradas dessa classe, como elas podem potencialmente se constituir como um sujeito fundamental na luta anticapitalista. Pois, do ponto de vista prático, se elas – que são metade da população e responsáveis por parir e cuidar da outra metade – param de realizar o trabalho reprodutivo, não existe reprodução da força de trabalho. E se os trabalhadores não nascerem, se alimentarem, socializam e não estiverem em condições plenas de saúde, simplesmente não há trabalho. Este foi um reconhecimento que marcou toda a história da luta feminista e socialista – a exemplo dos debates ocorridos durante a Revolução Russa sobre a socialização do trabalho doméstico e sobre a importância de se organizar mulheres trabalhadoras, entendendo-as como sujeitos da revolução – e que tem sido reavivado mais recentemente, com a chamada por uma Greve Internacional de Mulheres junto às últimas convocatórias do 8 de março sob o signo do “eu paro”, e com a própria pandemia, que escancarou e deu visibilidade à presença feminina nos chamados trabalhos essenciais e de cuidado no setor da saúde, educação e no próprio âmbito doméstico. Além disso, trata-se de um debate que complexificou a elaboração estratégica e de agendas políticas no âmbito das esquerdas atestando o quanto a luta de classes, além de se dar nas fábricas, também ocorre nos lares e nos locais da reprodução social (escolas, creches, hospitais, etc.).
Assim, partindo das lacunas, limitações ou ausências da obra de Marx, as feministas promoveram uma renovação da própria tradição marxista. Reinterpretando as categorias marxistas através de uma “lente feminina”, consolidaram uma abordagem científica sólida sobre as relações íntimas que a opressão feminina guarda com a reprodução do capitalismo e como ela assume diferentes formas, de acordo com a classe, raça, sexualidade e nacionalidade de cada mulher. Nesse sentido se, por um lado, o marxismo foi fundamental para a consolidação de uma vertente específica no movimento de mulheres – o feminismo marxista, socialista, revolucionário – oferecendo a ele embasamento teórico, permitindo às feministas compreenderem a opressão da mulher não como algo natural, um fenômeno puramente biológico ou psicológico, mas como um produto histórico, que se dá na e pelas relações sociais entre homens e mulheres em determinados contextos socioeconômicos, por outro, ele também foi um objeto de crítica, de forma que a nova leitura ou o “novo Marx” descoberto pelas feministas também contribuiu, por sua vez, para a atualização e renovação dessa tradição. Dessa forma, o encontro entre marxismo e feminismo gerou não apenas uma “marxificação” do feminismo, mas também um processo de “feminização” do marxismo, formando uma história que possui diferentes capítulos e que se deu ao longo de várias gerações, desde o marxismo clássico até os dias de hoje, cada qual responsável por ter gerado tanto novas noções e práticas para a libertação das mulheres, quanto um movimento de complementação e ampliação do pensamento de Marx, fundamental para mantê-lo como uma tendência intelectual e política viva e em constante mutação. Flora Tristan, Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, Alexandra Kollontai, Nadejda Krúpskaia, Inessa Armand, Simone de Beauvoir, Angela Davis, Juliet Mitchell, Heleieth Saffioti, Lise Vogel, Silvia Federici, Nancy Fraser são alguns exemplos, entre tantos outros, de mulheres que tiveram um papel de destaque nesse processo, seja como protagonistas de importantes eventos históricos e lideranças na construção de organizações socialistas e nos movimentos sociais, seja na batalha das ideias no debate público e no interior da academia – sem estar isentas, vale lembrar, de enfrentar uma série de contradições e dificuldades em meio a isso, haja vista os reveses e a próprio cultura política que infelizmente ainda predomina em uma série de partidos, sindicatos e ambientes intelectuais, um tanto hostis (para se dizer o mínimo) ao debate e luta feminista.
Podemos dizer que hoje assistimos um novo capítulo dessa relação entre marxismo e feminismo, que atravessou diferentes gerações e contextos históricos, produzindo embates e sínteses, que têm sido resgatados e atualizados perante aos desafios postos pela atual conjuntura. Não é uma mera coincidência que, desde a crise de 2008, houve tanto um “retorno a Marx” e um interesse renovado pela tradição marxista, quanto a emergência de uma “nova onda” do feminismo a nível mundial, marcada por um maior protagonismo das mulheres – trabalhadoras, jovens, negras, periféricas, mães, migrantes, trans, indígenas e quilombolas-, que estão na linha de frente dos processos de resistência democrática, contra as atrocidades dos governos de extrema-direita e na luta pela vida, que vem sendo constantemente colocada em xeque pelo capitalismo neoliberal e sua lógica de espoliação. E o fato é que tanto o feminismo marxista tem adquirido uma posição de destaque no interior do movimento de mulheres (disputando seus sentidos e significados, em oposição ao feminismo liberal), quanto do próprio marxismo contemporâneo – para que se renove e seja capaz de enfrentar os problemas produzidos pelo capitalismo em sua atual fase, cada vez mais pautados na exploração de classe, na opressão de gênero, no racismo e na devastação ambiental. Numa tensão criativa entre trabalho intelectual e político, uma nova geração está revivendo a relação entre o pensamento feminista e a luta por emancipação e justiça social. Esperamos que nesse novo capítulo sejam gestadas mais contribuições para pensarmos a construção de um projeto anticapitalista, novas formas de relações sociais, novas epistemologias e maneiras de fazer política, que superem certos reducionismos e determinismos econômicos vulgares, e que estejam à altura dos desafios de nossa época – que são muitos.
O presente ensaio apresenta, de maneira resumida, algumas questões desenvolvidas no artigo “Feminismo, ponto de renovação do marxismo”, publicado na Revista Outubro.

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