
Afetos ferozes, de Vivian Gornick
Isabella Meucci
“Vivi naquele prédio entre os seis e os vinte e um anos de idade. Havia vinte apartamentos, quatro por andar, e na minha memória era um edifício cheio de mulheres. Mal me lembro dos homens. Eles estavam por toda parte, lógico – maridos, pais, irmãos -, mas só me lembro das mulheres. E na minha memória todas são rudes como a sra. Drucker ou ferozes como minha mãe”. Na primeira página de Afetos Ferozes somos confrontadas com tudo aquilo que constitui suas referências, mas também suas repulsas. Escrito em 1987 e publicado em português somente em 2019, o livro de memórias da escritora e crítica literária Vivian Gornick é um retrato particular e atemporal da relação entre mãe e filha. Particular porque situado em seu tempo de escrita, no espaço da cidade de Nova York, com uma narradora de 45 anos e uma mãe judia de 77 que caminham juntas por essa cidade. Atemporal porque nas lembranças rememoradas de Gornick se desenrolam os sentimentos próprios – e por vezes escamoteados – das relações entre mãe e filha, os conflitos retratados de maneira tão sincera e honesta, as angústias que perpassam a busca de si mesma a partir do distanciamento com um passado que continua a exercer atração. A força daquelas mulheres como sua mãe, capazes de tornar os homens uma mera bruma da infância, é a referência mais vívida e o incômodo constante. Enquanto fortes no ambiente doméstico, por vezes violentas e cruéis, essas mulheres também eram o retrato das limitações a elas impostas no espaço público. A geração de Gornick, como outras que sucederam a dessas mulheres, deseja desesperadoramente romper esses limites, ao mesmo tempo que se vê profundamente atrelada a essa história. De fato, são afetos muito ferozes.
GORNICK, Vivian. Afetos ferozes. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Todavia, 2019.
