
Júlia Braga Neves*
“É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro,
de posse de boa fortuna, deve estar atrás de uma esposa.
Por mais desconhecidos que sejam os sentimentos e as opiniões
desse homem no momento em que chega a uma nova
vizinhança, tal verdade está tão bem entranhada na mente
das famílias da região que ele é considerado, imediatamente e
por direito, propriedade de uma ou outra de suas filhas.”
Jane Austen, em Orgulho e preconceito
Os famosos primeiros parágrafos de Orgulho e preconceito, publicado em 1813, refletem as premissas do casamento como instituição social e, de imediato, sugerem as implicações que essa união significa para homens e mulheres. Primeiramente, Austen evidencia que são os homens que estão em busca de uma esposa e não o contrário, o que tornaria as mulheres meros objetos de troca entre as famílias que desejam manter o seu status social e econômico ou então elevá-lo. No parágrafo seguinte, essa relação é posta como verdade aceita e reconhecida pelos membros daquele vilarejo, mas há uma afirmação irônica que inverte essa “verdade universalmente reconhecida” com a postulação de que esse homem solteiro e de posses poderia ser estimado como uma “propriedade” das jovens mulheres. Se são as mulheres que servem como moeda de troca entre as famílias, então como um homem pode ser considerado uma propriedade?
O próprio enredo do romance é desencadeado pelo fato de que a família Bennet, cuja prole é composta por cinco filhas, procura solucionar um problema de herança: por conta das condições legais de posse da propriedade familiar, somente um herdeiro do sexo masculino pode herdá-la. Caso não haja um homem para recebê-la legalmente após a morte do pai, o seu bem seria herdado por seu primo, o clérigo Sr. Collins. O casamento de pelo menos uma das filhas garantiria, portanto, que a propriedade de onde provém a renda familiar continue entre os seus descendentes e não os do primo. Outra possível interpretação é justamente a competição entre as personagens femininas por um casamento digno: a aquisição de uma “propriedade” simbólica calcada na respeitabilidade moral e na conservação ou na ascensão do status social, que era adquirida pelo casamento.
Não é à toa que quando a irmã mais nova de Elizabeth Bennet, a heroína do romance, foge com o militar George Wickham, há tensão e pânico na família, pois a relação de Lydia Bennet com Wickham fora dos laços matrimoniais arruinaria por completo a reputação da família e as chances de as outras irmãs se casarem. Em Orgulho e preconceito, Austen mostra como o casamento é determinante para o futuro de uma mulher. Lydia, por exemplo, é representada como uma menina tola, imatura e frívola. Ela casa-se com Wickham e a família consegue conter os possíveis danos às outras filhas, porém, o casamento da caçula está longe de ser considerado ideal para os padrões da época e a sua inconsequência implica um declínio de status social, pois Wickham não tem posses, propriedade nem título nobre.
A representação do casamento na literatura torna ainda mais visível a forma pela qual essa instituição implica, nas palavras de Gayle Rubin, “[a] acumulação de riqueza e [a] manutenção do acesso diferencial aos recursos políticos e econômicos; [a] construção de alianças; [a] consolidação de pessoas de alta colocação social numa camada única e fechada de parentesco endogâmico.” (Rubin, 1993, p. 25) Dialogando com as teorias de Marx, Lévi-Strauss, Freud e Lacan, Rubin reflete sobre a construção das relações de parentesco a partir do tabu do incesto e do papel das mulheres como “dádivas” trocadas entre homens. Nessa configuração, há maior controle e proibição sobre a escolha dos parceiros sexuais e, sobretudo, uma garantia de que haja trocas maritais entre os grupos, pelas quais as mulheres de um grupo cumprirão o seu papel como “dádivas” que serão oferecidas a outro, que será recompensado com um laço de parentesco que poderá trazer benefícios sociais ou financeiros para os seus. Segundo Rubin, como as mulheres servem como objeto de troca, o seu papel aparece mais como um “fio condutor” das relações de parentesco do que propriamente como uma parceira que pode se beneficiar dessas trocas.
Embora Austen não faça uma crítica contundente a esse “mercado de casamento”, Orgulho e preconceito certamente torna evidente o que está em jogo no “tráfico de mulheres” apresentado no romance e quais são as consequências quando as regras não são respeitadas ou a troca não é eficiente. Lydia sintetiza as consequências do fracasso por ter escolhido aventurar-se com um militar de baixo escalão que compromete o seu status social e arrisca a respeitabilidade de suas irmãs. O destino das personagens no romance de Austen pode ser entendido como uma lição moral para as meninas da época com o intuito de alertá-las aos perigos iminentes quando não se obedece às obrigações morais da feminilidade e do casamento.
Em pleno século XXI, ainda estamos longe de apreender mudanças críticas acerca do casamento e das relações de parentesco, ainda que estes tenham lentamente se modificado. Pelo menos na maior parte das sociedades ocidentais, não há mais o dote do casamento, as mulheres podem pedir divórcio, casar-se novamente e constituir novas famílias, elas podem escolher não se casarem ou ainda não ter filhos. Porém, questões financeiras continuam a ser um dos principais motivos pelos quais mulheres não conseguem se separar de seus maridos; há ainda o julgamento moral de casamentos inter-raciais ou de pessoas entre distintas classes sociais; mulheres solteiras ainda são questionadas sobre a sua sexualidade ou capacidade de relacionamento e, sobretudo, o casamento e as suas pequenas variações continuam a ser a única forma possível de relação para a constituição de famílias aos olhos do estado.
Publicado em 1885, Diana of the Crossways de George Meredith já levantava essas questões. Órfã de pai e mãe, a protagonista desse romance, Diana Merion, é uma intelectual que almeja a sua independência e não enxerga grandes vantagens no casamento. Ela e sua melhor amiga, Emma Dunstane, que já é uma senhora casada e a única pessoa que Diana poderia considerar família, passam horas em suas salas de estar discutindo política, economia, história e filosofia: elas são mulheres extremamente letradas que são consultadas por políticos sobre assuntos referentes a investimentos e assuntos políticos. Apesar desses atributos, Diana decide casar-se repentinamente com o inquilino de Crossways, propriedade deixada a ela de herança por seu pai, porque o marido de Emma, Lukin Dunstane, a assedia. Sem coragem de contar à amiga, Diana escolhe o casamento com Augustus Warwick para impedir outros episódios de assédio e para que ela possa encontrar-se com Emma. Warwick é um homem ciumento e agressivo que usa o charme e a inteligência de sua esposa para subir politicamente em sua carreira, visto que Diana é uma mulher hábil na política, embora ela mesma não possa atuar nela, e uma exímia anfitriã, tornando o seu marido atraente à classe abastada londrina que nutria pouco interesse em Warwick antes de seu casamento. Após voltar de uma viagem a trabalho no exterior, Warwick é convencido de que Diana estaria tendo um caso extramarital com Lorde Dannisburgh, um político renomado e um grande amigo de Diana, e inicia um processo para a obtenção do divórcio, o qual ele não consegue.
Meredith baseou a sua história na de Caroline Norton, escritora e reformadora social que abandonou o marido George Norton em 1836 após enfrentar um processo de divórcio no qual ele a acusava de adultério com o então Primeiro Ministro da Inglaterra lorde Melbourne. Nessa época, os homens não podiam processar as suas esposas para a obtenção de divórcio por conta das leis matrimoniais que consideravam os cônjuges como uma só pessoa pela qual somente o homem tomava as decisões. George não conseguiu o divórcio e Caroline, desmoralizada e destroçada pelas atitudes do marido, o abandonou, pagando o preço da perda da guarda dos filhos. Ela tentou se reerguer trabalhando como autora e jornalista, mas todos os seus ganhos iam direto para o seu marido. A sua resposta foi perspicaz: indignada que todo o dinheiro ganho com o seu trabalho fosse diretamente para a conta de George, Caroline passou a fazer inúmeras dívidas em nome do marido para se sustentar. A inglesa foi protagonista em diversas lutas feministas do século XIX que visavam mudanças na legislação acerca da guarda dos filhos, das leis de herança e as de divórcio.
É em 1857 que o divórcio é colocado sob jurisdição da corte civil, ao invés da eclesiástica, na Inglaterra, com o Matrimonial Causes Act 1857. Esse ato possibilitou maior acesso ao divórcio, que antes estava disponível somente às classes muito abastadas. Ainda que muito modesto acerca das mulheres, o ato que foi aprovado permitia que o homem pedisse o divórcio em caso de adultério da esposa, enquanto as mulheres só podiam fazê-lo quando comprovado o adultério dos maridos combinado com incesto, bigamia, estupro, sodomia, bestialidade e crueldade ou em caso de abandono por 2 anos. Mulheres que fossem abandonadas teriam o dinheiro de manter seus futuros bens e propriedade, o que foi considerado uma vitória, apesar de moderada, para as feministas da época. É somente em 1882 que mulheres casadas conseguem o direito de assegurarem os seus direitos individuais, o que permitia que elas assinassem contratos, se representassem legalmente e ganhassem salários independente de seu casamento.
Ao contrário da história de Caroline Norton, que passou a sua vida em constante tensão com o ex-marido e em luta pelas reformas das legislações que se referiam às mulheres, a história de Diana Merion já se passa após essa reforma legislativa referente ao divórcio e à propriedade das mulheres casadas. Ainda assim, a tentativa de divórcio imposta por seu marido e a decisão de abandoná-lo determina a sua reputação pelo resto de sua vida. Logo depois de deixá-lo, Diana muda-se para Londres onde tem o intuito de defender-se das histórias disseminadas por Warwick e onde pretende iniciar sua carreira como escritora. Seus objetivos são a princípio alcançados com êxito: entre um jantar e outro e a partir de aproximação com pessoas do alto escalão político britânico, tanto os homens como suas esposas, Diana consegue ganhar a simpatia e o apoio de uma boa parte desses grupos, fazendo seu marido ser percebido como um tolo que tentara arruinar sua esposa por conta de um delírio de ciúmes. Ela também consegue publicar o seu primeiro romance, que é recebido elogiosamente pela crítica, graças ao amigo e renomado político Thomas Redworth.
Porém, o êxtase do sucesso logo se dissipa quando Diana constata que ela não pode se relacionar com outras pessoas abertamente porque, aos olhos do estado, ela continua casada. Além disso, os seus romances subsequentes não obtêm tanto sucesso e ela perde o seu principal meio de sustento, tendo que vender a propriedade herdada por seu pai. Com inúmeros obstáculos a serem superados pela sua posição de mulher separada, ela cai em desgraça e percebe que a única maneira de conservar o seu status social seria o casamento, o qual ela não necessariamente deseja, pois o seu real objetivo é a independência financeira. Ao final do romance, o marido de Diana morre e ela, a contragosto, casa novamente, mas com o seu melhor amigo Thomas Redworth.
É interessante notar que, ao contrário da maioria dos romances vitorianos, Meredith conta a história de sua protagonista com um narrador que se mostra ao lado das opiniões de Diana e de seus dilemas, ao invés de julgá-los moralmente. A questão moral do romance é exposta pelas diferentes opiniões que as personagens emitem sobre Diana, mas não do narrador em si. A grande problemática de Diana of the Crossways é justamente o casamento como instituição necessária para a mulheres: Diana frequentemente indaga qual é o papel dessa instituição e critica as suas consequências para as mulheres que, segundo ela, precisam todo o tempo utilizar as máscaras da subserviência e passividade para conseguirem sobreviver. Ao contrário de Orgulho e preconceito, que é taxativo na relevância moral do casamento para as mulheres, o romance de Meredith é um dos poucos livros do século XIX que coloca como tema central a rejeição do casamento e os danos dessa instituição para as mulheres.
Apesar de todos os avanços, como o divórcio, a possibilidade de independência financeira e as mudanças legislativas referentes à herança, é inegável que as bases fundadoras do casamento prevalecem, pois as mulheres, na maioria das vezes, continuam a atuar como “fios condutores” das trocas entre famílias e, sobretudo, assumem o papel central do funcionamento da esfera doméstica e da reprodução social. Como “fios condutores” ou moedas de troca, as mulheres certamente obtiveram ao longo dos séculos XIX e XX direitos que fortalecem sua capacidade de decisão, porém as consequências morais, físicas e financeiras para permanecer ou sair de um casamento continuam arriscadas, principalmente quando se opta pelo segundo.
Referências bibliográficas
AUSTEN, Jane. Orgulho e preconceito. Alexandre Barbosa de Souza (trad.). São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2003.
MEREDITH, George. Diana of the Crossways. Project Gutenberg, 2006 (1885). Ebook (Kindle).
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo. Christine Rufato Dabat, Edileusa Oliveira da Rocha, Sônia Corrêa (trad.). Recife: S.O.S Corpo, 1993.
* Júlia Braga Neves é professora de literatura em língua inglesa no Departamento de Letras Anglo-Germânicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e é doutora em Literatura e Cultura Inglesas pela Universidade Humboldt de Berlim e pelo King’s College Londres.
