
Daniela Costanzo
O Processo é o primeiro filme-documentário lançado sobre o Impeachment de Dilma Rousseff. Dirigido por Maria Augusta Ramos, ele é feito sem nenhum tipo de abordagem direta, como entrevistas ou intervenções, ao contrário, são utilizadas apenas imagens das discussões e principalmente da comissão no Senado.
Abaixo pontuarei algumas observações que fiz sobre o filme, considerando que não existe um documentário que mostre “a verdade”, há sempre uma narração dos acontecimentos que não poderia ser neutra, há sempre escolhas de cenas para a montagem que fazem parte da criação da peça e ao mesmo tempo há a objetividade da forma fílmica em si, que não pode ser totalmente controlada pelo autor da obra e que permite que façamos reflexões sobre o filme e a realidade.
O nome “O Processo”
O Senador Lindenberg fala durante o filme que eles estavam no meio de um processo kafkaniano, sem pé nem cabeça. O documentário trabalha com imagens que procuram mostrar a completa irracionalidade do processo, desde falas da acusação que não se atém aos detalhes jurídicos de um processo que é essencialmente jurídico até cenas caricatas como a de Raimundo Lira pedindo para trocar a campainha do Senado no meio da comissão do impeachment. A troca é filmada nos detalhes. Reforça isso também os textos que aparecem no começo do filme dizendo que Temer e Cunha eram acusados e que Temer era o primeiro presidente acusado a permanecer no cargo.
Mas há outra dimensão do título que aparece durante filme: o impeachment como um processo que continua após a destituição de Dilma Rousseff do cargo. O documentário coloca imagens e textos que tratam das medidas aprovadas no governo Temer para limitar os gastos com saúde e educação e para tirar direitos dos trabalhadores, como a lei da terceirização e o fim da CLT. Além disso, ao final vemos o ataque de policiais ao povo na frente da Câmara dos Deputados, com bombas e tiros de bala de borracha e a fumaça tomando toda a tela. Ou seja, trata-se de um processo contínuo contra o povo.
Recursos Retóricos
O filme trabalha com pares de oposição entre os dois lados (a favor e contra o impeachment) e com recursos de amplificação.
Razão x Paixão: as imagens do PT e de sua defesa são sempre de pessoas calmas, tranquilas, que utilizam argumentos relacionados com o processo jurídico em questão. Em oposição a isso, o outro lado aparece como apaixonado, emocionado, intencionado, utilizando argumentos que fogem do processo jurídico. Janaína Paschoal chora, os senadores tucanos interrompem, Raimundo Lira deixa escapar que aquele era um momento histórico e merecia uma campainha nova, a mesma figura perde a razão quando diz que proibiu a utilização de termos pejorativos em relação ao PT, ao ser questionado diz que pode ter deixado escapar algum pois estava no “toilette”. Cardozo recorre à Platão em certo momento do filme para argumentar que havia apenas um lado racional ali. Janaína Paschoal diz que confundiram ela com mãe de santo ou pastora, ela nega e em seguida grita levantando o “livro sagrado” (a constituição) agindo como pastora de fato.
Amplificação: Cardozo argumenta que o processo é completamente desproporcional e utiliza um recurso retórico clássico de amplificação — “se alguém roubar um grampeador então é Impeachment?”.
Contradição: Dilma fala que aquele processo era uma farsa. Em seguida aparecem as gravações de Romero Jucá, deixando claro que se tratava de fato de uma farsa.
O golpe de 2016 e o golpe de 1964
Janaína Paschoal diz que estava fazendo aquilo pelo bem da Dilma e de seus netos, já que não gostaria de ter que estar naquela posição, dando a entender que se tratava de sua “tarefa histórica”. Cardozo responde que quando torturada durante a ditadura militar, Dilma ouviu o mesmo argumento de seus torturadores, “é para o seu bem”.
Bolsonaro e outros deputados defendem o Impeachment em nome da revolução de 64, do coronel Ustra e da família. PT, PSOL, PC do B e outros são contra o Impeachment pela democracia, LGBTs, mulheres, pobres e trabalhadores.
O filme parece mostrar que novamente o golpe era a revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, dos pudibundos, dos bacharéis em lei, dos tesouros da bestice rural; o ressurgimento dos setores mais marginalizados e antiquados da burguesia, pela família e com Deus (Schwarz, 2014, páginas 19-20).
Janaína Paschoal toma um todinho, é entrevistada por fãs de Londrina, manda beijo grande para o Paraná, tira foto com evangélicos e recorre à Deus. Uma caricatura perfeita do que dizia Schwarz.
As mulheres
Apesar de mostrar um ambiente absolutamente dominado pelos homens, o filme dá muito espaço para o protagonismo das mulheres e o tema é muito abordado, como não poderia deixar de ser.
Gleise Hoffmann aparece dominando os debates nos bastidores do PT, sempre à frente no enquadramento e em repetidas cenas.
Janaína Paschoal defende seu ethos, dizendo ser insuspeita para julgar uma mulher, já que ela, como mulher, jamais gostaria de ter de tirar uma da presidência. Em outra cena, aparece abraçando a líder de uma igreja evangélica, dizendo que ela tem uma aliada contra a legalização do aborto. Ou seja, o filme mostra que por mais que Janaína recorra à posição de mulher, ela se mostra completamente contra qualquer emancipação feminina.
Em outro momento do filme, Dilma Rousseff diz que a imprensa a coloca ora como uma mulher louca, medicada e descontrolada, ora como uma mulher fria e calculista. As cenas mostram Dilma tranquila e serena falando sobre isso e sobre outras coisas.
A cena de mulheres levando flores para Dilma também ocupa uma parte da película, assim como Gleise Hoffmann falando que os governos do PT foram conservadores, por isso as feministas não estavam com eles.
PT e autocrítica
Apenas os bastidores do PT aparecem no documentário. A autocrítica ocupa um espaço importante nesses momentos. Gilberto Carvalho fala do interessante dado de que o governo Lula foi aquele que mais fechou rádios comunitárias e apesar de “estarmos caindo pelos nossos acertos”, erramos ao dar mais dinheiro para a mídia, ao não fazer a reforma política, ao naturalizar as formas de governar, ao não criar um jornal do povo como fez Getúlio. Gleise Hoffmann endossa esta percepção dizendo que o PT foi muito conservador e que agora nem tinha condições de governar.
Referência bibliográfica
SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964–1969. In: SCHWARZ , Roberto. As ideias fora do lugar: ensaios selecionados. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014.
