rosa luxemburgo e o feminismo

Rosa Luxemburgo

Isabel Loureiro[1]

Neste tempo sinistro que nos foi dado viver, quando a desigualdade social e de gênero, o racismo estrutural, a destruição da natureza, a violência contra mulheres, negros, indígenas, LGBT – para não me alongar na lista interminável das barbáries contemporâneas – está no auge, a luta das mulheres contra o capitalismo e seu aliado senil, o patriarcado, representa alguma esperança de transformação. As jovens militantes feministas, em busca de exemplos de companheiras combativas como símbolo de luta, dão voz às suas irmãs do passado. Entre elas, a revolucionária judia polonesa Rosa Luxemburgo, assassinada em Berlim em 15 de janeiro de 1919 por soldados de uma milícia protofascista.

Naquela época, a tese da inferioridade natural das mulheres era amplamente admitida na sociedade patriarcal da Alemanha imperial: o código civil estabelecia a subordinação da mulher e dos filhos ao marido e só em 1908 foi abolida a proibição de participar da vida política e entrar na universidade. A ideia de uma natureza feminina, que obrigava a mulher a ficar confinada ao papel de esposa e mãe era moeda corrente. Nesse cenário, a principal bandeira feminista consistia na luta contra a desigualdade entre os sexos, sobretudo na luta por direitos políticos, que só foram obtidos com a queda da monarquia em 1918.

Sabemos que Rosa não tinha nenhum interesse particular por “assuntos de mulher” e que não pode ser considerada feminista na atual acepção do termo. Se reunirmos o pouco que escreveu sobre o tema, veremos que sua posição é basicamente a mesma de sua amiga Clara Zetkin: separa “feminismo burguês” e “feminismo proletário”; considera o trabalho assalariado fundamental para a emancipação feminina; critica aqui e ali a hipocrisia da família burguesa, com sua desigualdade inerente.

Isso fica claro quando Rosa ironiza o Congresso Internacional das Mulheres, reunido em Berlim em 1904 para lutar pelos direitos das mulheres, caracterizado por ela como um congresso de senhoras burguesas.[2] Para Rosa, a luta consequente por esses direitos é inseparável da luta antirracista, cujo exemplo se encontra nos primórdios do movimento feminista nos Estados Unidos, em sua luta conjunta com os negros pela emancipação dos escravos. Dessa perspectiva, Rosa critica o movimento das mulheres na Europa e suas reivindicações fúteis, que apenas cumprem o papel de preencher o “vazio da vida e da cabeça” das senhoras burguesas, cansadas de servir de bonecas ou cozinheiras dos maridos: “ingresso das mulheres nas universidades, andar de bicicleta, direito de voto para os parlamentos, ensinar floricultura e artesanato às meninas, debater sobre a melhor maneira de educar as crianças, usar roupas confortáveis, etc.”

Já a mulher trabalhadora, que se recusa a comparecer a esse Congresso de burguesas, “é igual ao seu companheiro no sofrimento da labuta para obter o pão quotidiano para si e seus filhos.” Fazendo do desejo realidade, Rosa considera que já existe igualdade entre homens e mulheres do proletariado pelas seguintes razões:  ambos trabalham para o capital e recebem salário, justificação para terem os mesmos direitos políticos na sociedade capitalista;[3] ambos estão engajados na luta pelo socialismo e sabem que “Assim que a classe trabalhadora vitoriosa tiver eliminado toda exploração e opressão do homem pelo homem, também encontrará fim a longa dominação da mulher pelo gênero masculino.”[4]

Nesses artigos, Rosa adota a posição convencional das feministas marxistas no começo do século XX, em que a questão feminina é apenas um aspecto da questão social. Além disso, considera a trabalhadora superior à burguesa porque se tornou independente pelo trabalho. Contra a estreiteza da vida doméstica, Rosa apresenta uma visão idealizada da mulher trabalhadora e parece não perceber a opressão de gênero na classe operária: “É apenas na proletária moderna que a mulher se torna um ser humano, pois é apenas a luta que produz o ser humano, a participação no trabalho cultural, na história da humanidade.”[5] O raciocínio se limita a essa oposição simplista entre “feminismo burguês” e “feminismo proletário”. Questões como dupla jornada de trabalho, criação de serviços que amenizem as tarefas domésticas (berçários e creches, como reivindicavam as feministas burguesas), definhamento da família vista como instituição de reprodução da ideologia burguesa, união livre etc. não são temas abordados nos artigos, embora Rosa tivesse consciência da hipocrisia da vida familiar da época, incluindo os trabalhadores.

Porém, dois aspectos rapidamente mencionados chamam a atenção nesses artigos: a união entre feminismo e combate ao racismo;[6] a consideração de que o duro trabalho doméstico, “uma gigantesca contribuição em termos de autossacrifício e dispêndio de forças”, que ajuda o homem “a garantir, com um salário exíguo, a existência diária da família e a educar as crianças”, é injustamente considerado improdutivo.[7] Aqui Rosa parece descontente com a camisa de forças da análise marxista clássica, que ignora o papel central do trabalho reprodutivo na manutenção da vida. A ideia de que o trabalho doméstico não remunerado cria indiretamente lucro para o capitalista só foi formulada bem mais tarde,[8] inclusive a partir de indicações da própria Rosa na sua obra de economia política, como veremos a seguir.

As feministas alemãs da década de 1980, na tentativa de ir além da imagem de uma Rosa “masculinizada”, que lutava em pé de igualdade com os homens contra o patriarcado dominante na social-democracia, ou ir além da sensível escritora de cartas, amiga dos animais e das plantas, começaram a indagar se suas ideias poderiam contribuir para uma política diferente da masculina, mais próxima das necessidades humanas, menos tecnocrática, menos beligerante, menos destrutiva. Rosa, ao participar do espaço público como intelectual, oradora, jornalista, professora da escola do partido, e também como mulher independente na vida privada, aparecia como fonte inspiradora. Havia a ideia de que a participação das mulheres no espaço público já seria um avanço em termos de humanização. Foi preciso ver mulheres em altos cargos para perder as ilusões a esse respeito.[9]  

Porém, a ideia central no pensamento político de Luxemburgo – as massas só se libertam por meio de sua ação autônoma – foi considerada valiosa para a emancipação das mulheres. Assim como as massas, se as mulheres não agirem por si mesmas, outros sempre irão agir sobre elas. Ou seja, a emancipação dos subalternos, quer seja uma classe, quer sejam as mulheres, só pode resultar da ação autônoma das próprias concernidas. Liberdade outorgada não é verdadeiramente liberdade.[10]

Além desse ponto que toca na auto-emancipação das mulheres, há outro ainda mais fértil para a teorização feminista inspirada em Luxemburgo. Refiro-me às teorias que partem da tese central da sua principal obra de economia política, A acumulação do capital: o capital, para acumular, precisa de domínios externos a ele. Nesse processo de “acumulação primitiva permanente” o capital destrói de maneira violenta os domínios extra-capitalistas ao transformá-los em mercadoria. Tal era, grosso modo, a explicação de Luxemburgo para as origens do imperialismo. As feministas alemãs atualizaram essa tese mostrando que os espaços de acumulação do capital não são só geográficos, mas também sociais, e incluíram aí o trabalho doméstico não remunerado das mulheres, que permite ao capital pagar salários menores aos trabalhadores do sexo masculino. Uma das autoras mais conhecidas dessa corrente, Maria Mies, mostra que o capitalismo contemporâneo, para se expandir, precisa tanto das colônias quanto das donas de casa como setores não-mercantis. A mãe-natureza, as mulheres e as colônias são centrais e não periféricas no processo de acumulação do capital. Assim, o trabalho flexível, precário, mal remunerado (ou não-remunerado) das mulheres se tornou a referência para a acumulação do capital em larga escala.

Se Rosa Luxemburgo continua sendo fonte de inspiração para suas irmãs do século XXI isso não se deve, como vimos, a seus artigos sobre a questão feminina, presos às insuficiências da social-democracia. O que importa hoje para nós é seu projeto radicalmente anticapitalista. Rosa não queria apenas oportunidades iguais para homens e mulheres nos limites da sociedade capitalista, e sim acabar com o sistema de exploração dos seres humanos pelos seres humanos. Por isso lutou a vida inteira em prol de uma sociedade justa e livre, para ela sinônimo de socialismo. E por fim, a construção de si mesma como mulher independente, que Rosa alcançou a duras penas como podemos ver pela sua correspondência, também dá ânimo à luta por nossa própria emancipação.  


Notas

[1] Isabel Loureiro é doutora em filosofia e especialista em Rosa Luxemburgo, em social-democracia alemã e em debates sobre revolução. Foi presidente da Fundação Rosa Luxemburgo entre 2003 e 2011, onde hoje é colaboradora. É professora aposentada do Departamento de Filosofia da UNESP, onde lecionou por 24 anos. Atualmente faz parte do CENEDIC, da Universidade de São Paulo.

[2] “Senhoras e mulheres” (1904), Gazeta Ludowa [Gazeta do Povo]. Em http://100anos.rosalux.org.br/category/mulheres/

[3] “Direito de voto das mulheres e luta de classes” (1912). Em Rosa Luxemburgo, Textos escolhidos I, São Paulo, Editora UNESP, 2017.

[4] “Senhoras e mulheres”, cit.

[5] “A proletária”. Em Rosa Luxemburgo, Textos escolhidos I, São Paulo, Editora UNESP, 2017, p.494.

[6] “A proletária”, p.496 e “Senhoras e mulheres”.

[7] “Direito de voto das mulheres e luta de classes”, cit., p.448.

[8] Ver Silvia Federici, O ponto zero da revolução – trabalho doméstico, reprodução e luta feminista, São Paulo, Elefante, 2019.

[9] Frigga Haug, Rosa Luxemburg y el arte de la política, Madrid, Tierradenadie, 2013.

[10] Idem, p.64.

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