
Maíra “Mee” Silva[1]
Questões da população LGBTQIAP têm vindo com mais frequência à tona nos diversos âmbitos da sociedade e em diversos países do mundo. No nosso país, a precarização da existência dessa população é principalmente notória entre travestis, transexuais e mulheres transgêneras. O que também leva nossa atenção ao fator de raça e deslocamentos populacionais, já que a maior parte desse grupo é de pessoas não brancas que migram de rincões menos urbanizados para os centros urbanos.
Movimentos sociais aqui e em outras partes do mundo fizeram louváveis avanços em termos de direitos e mentalidades nas décadas recentes. Mas, em alguns países, a não heterocisgeneridade ainda é punível com a pena de morte. Naqueles em que há direitos conquistados, estes necessitam de aprimoramentos e, como a história recente dolorosamente nos prova, direitos conquistados não são direitos garantidos, e mentalidades estão em constante disputa.
Em tempos de crise do capitalismo, esses direitos e as concepções sobre esses grupos estão entre os primeiros a serem golpeados. Os motivos para isso podem ser muito bem observados pelas análises da Teoria da Reprodução Social.
A Teoria da Reprodução Social (TRS) – que pode ser, de maneira mais completa, chamada de Teoria da Reprodução Social da Força de Trabalho – é uma teoria feminista marxista. Seu foco principal é a contradição entre duas necessidades que o modo de produção capitalista tem para manter suas taxas de lucro. Uma, a de que a classe trabalhadora seja reproduzida geracional e socialmente em número e qualidade adequados para a sua exploração no trabalho dito produtivo, assalariado. A outra, a de que o Capital pague nada ou muito pouco por essa reprodução.[2]
A reprodução social da força de trabalho propriamente dita são todos os trabalhos envolvidos em fazer a manutenção da vida (alimentação, cuidados com a saúde, educação, socialização, descanso etc.) dos atuais trabalhadores para que retornem ao trabalho a cada dia e produzam da mesma maneira que no dia anterior, dos futuros trabalhadores (bebês e crianças), das pessoas que já não integram mais a força de trabalho (idosas e idosos), das que não poderão integrar (doentes crônicos, alguns casos de pessoas com deficiência) e dos desempregados.[3]
No âmbito da primeira necessidade mencionada, a classe trabalhadora precisa ser reproduzida quantitativamente e qualitativamente. Para a manutenção da acumulação do capital, é necessário que a classe trabalhadora seja extremamente numerosa a ponto de haver um excedente populacional. Não obstante a ideia de excedente populacional estar vinculada a restrições criadas pelo próprio modo de produção à disponibilidade de vagas de trabalho assalariado, ainda existe a necessidade de que essa população se reproduza em quantidade numerosa especialmente para causar contração nos salários.
Mas como nascem novas trabalhadoras e trabalhadores? O expediente é todo deixado à sorte da classe e ao sabor do acaso por Marx n’O Capital,[4] brevemente resgatado por Engels em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado e mais bem desdobrado por autoras da TRS.
Sim, seres humanos são, antes como hoje, reproduzidos geracionalmente através de um ato entre dois indivíduos de conformações biológicas diferentes entre si. Porém, a forma, contexto e organizações sociais como isso ocorre, as que são socialmente aceitas e as que são tabus, são características de cada momento histórico.[5]
No nosso caso, sob o modo de produção capitalista, vivemos sob um regime de heterossexualidade e monogamia compulsórias com formação de famílias nucleares. Utilizaremos, aqui, a ideia de heterocismononormatividade ou heterocismonogamia compulsória.
O fato de que a classe trabalhadora é geracionalmente reproduzida através de relações cis-héteras poderia parecer argumento suficiente para que seja do interesse do Capital coibir todas as manifestações e práticas que saem dos estereótipos e papéis de gênero. Mas a reprodução da força de trabalho ainda tem um aspecto qualitativo.
Na maneira histórica como se desenvolveu esse modo de produção, todos os trabalhos da reprodução social estão a cargo das mulheres (alguns inalienavelmente como gestação e amamentação) tanto quando são realizados não remuneradamente dentro do lar quanto quando são socializados e realizados de forma remunerada, haja visto o número preponderante de mulheres na educação infantil, enfermagem, cuidado de idosos e emprego doméstico entre outros. Setores esses que também carregam forte marca racial e migrante.
São trabalhos pesados que consomem muito tempo e têm uma justificativa perfeitamente capitalista para terem ficado majoritariamente a cargo da unidade familiar sendo realizados não remuneradamente dentro do lar. Não foram socializados para serem oferecidos gratuitamente pelo Estado porque nenhum Estado teria condições financeiras de arcar com todo ele. Também se o setor privado tivesse que assalariar toda a classe trabalhadora o suficiente para que pudessem consumir esse trabalho na forma de serviços pagos, não haveria lucro possível para os empregadores.
Em suma, nem o setor público nem o setor privado, separadamente ou em conjunto, têm condições de pagar pela reprodução social da força de trabalho no modo de produção capitalista.
Para que esse trabalho continue sendo realizado de forma gratuita para o Capital, existe muita necessidade de reforço de estereótipo e papéis de gênero e da família nuclear heterocismonogâmica. Isso vai de encontro à possibilidade do livre desenvolvimento de orientações sexuais que não a hétero, de identidades de gênero que não a cis, da intersexualidade e da assexualidade.
É justo reconhecer que parte da reprodução social foi sendo historicamente socializada. Hoje podemos contar, em alguns países, com hospitais e escolas públicos e gratuitos, por exemplo. Já lavanderias e restaurantes são casos históricos muito mais raros. O quanto da reprodução social está disponível de forma pública e gratuita e as formas em que isso se dá são sempre resultado da luta de classes em cada local e tempo histórico. No entanto, também devemos destacar que essas são sempre as primeiras estruturas a serem atingidas em momentos de crise do Capital.
Se consideramos que o salário é pago à trabalhadora e trabalhador para que realizem em seu âmbito privado a reprodução social de si e de sua família, outro recurso do modo de produção capitalista para coibir as sexualidades não normativas é através da desvalorização dos grupos populacionais contidos na sigla LGBTQIAP contraindo seus salários, assim como ocorre com outros grupos, como mulheres, pessoas negras, com deficiência, idosas, imigrantes etc. Todo o cenário fica evidentemente agravado quando um indivíduo combina mais de uma dessas características.
Mais extremo do que isso é o que ocorre em geral com travestis e mulheres transexuais e transgêneras. Anteriormente falamos sobre a formação de um exército industrial de reserva (EIR) através de restrições criadas pelo próprio modo de produção à disponibilidade de vagas de trabalho assalariado (a saber, aumento do grau de exploração, mecanização etc.). Agora devemos voltar os olhos para outra forma de criação de EIR: quando se impossibilita que uma categoria tenha acesso ao trabalho assalariado, como é o caso desse grupo populacional. Relegada a trabalhos informais (predominantemente a prostituição), acabam compondo um EIR que é facilmente mobilizado para setores como telemarketing, por exemplo, quando a indústria passa por períodos de depressão e pretende empregar mão de obra ainda mais barata.
A Teoria da Reprodução Social nos oferece uma nova lente para analisarmos a opressão à população LGBTQIAP sob uma perspectiva mais totalizante, compreendendo a precarização de suas existências a partir da sua relação como grupo com a produção e reprodução dentro do capitalismo. Essa análise vai para além da ideia de que a vulnerabilização dessas pessoas parte de mero preconceito ou julgamentos morais. Sob essa perspectiva, podemos falar sobre uma dupla origem da opressão: uma histórica e uma que se renova a cada dia, movida pelas necessidades cotidianas da acumulação do capital. Isso nos permite compreender a relação entre opressão e exploração no modo de produção capitalista como uma unidade dialética.
[1] Maíra “Mee” Silva é marxista, feminista, lésbica, estudante da Teoria da Reprodução Social, atuante no movimento social.
[2] ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: Um Manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
[3] BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social?. Outubro Revista, n. 32, 4 set. 2019. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2019/09/04_Bhattacharya.pdf. Acesso em: 27 jun. 2020.
[4] MARX, Karl. O Capital: Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 647.
[5] VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket, 2013. p. 150.

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