o sopro dos bons ventos argentinos

Foto: Ailen Possamay, artista argentina que grafitou muros de Buenos Aires com mensagens feministas (@ailenpossamay)

Beatriz Rodrigues Sanchez

Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado.”
Silvia Federici

A recente decisão ocorrida na Argentina, a partir da Administração Nacional de Seguridade Social, que reconheceu o cuidado materno como trabalho, dando direito à aposentadoria às mulheres que foram cuidadoras durante a vida, é uma conquista não somente das argentinas, mas de todas as mulheres. O Programa Integral de Reconhecimento de Tempo de Serviço por Tarefas Assistenciais garantirá a aposentadoria de aproximadamente 155 mil mulheres com mais de 60 anos que não fizeram parte do mercado de trabalho formal para cuidar dos filhos. Além disso, o programa atenderá mulheres com mais de 60 anos que não somaram o tempo mínimo de contribuição para se aposentar e as trabalhadoras com carteira assinada que recorreram em algum momento à licença maternidade, incluindo o período em que estiveram afastadas como tempo de serviço.

A conquista de nossas companheiras argentinas ecoa a clássica palavra de ordem feminista que afirma: “o pessoal é político!”. Essa inovadora política pública borra as fronteiras entre o público e o privado, promovendo o reconhecimento estatal de um trabalho historicamente invisibilizado, o trabalho de reprodução social. Este trabalho tem sido historicamente realizado por mulheres no âmbito doméstico. Muitas vezes, é visto apenas como uma forma de amor, expressão de afeto ou característica da “natureza” feminina. Apesar de poder sim ser uma maneira de manifestar carinho, ele é muito mais do que isso. Sem o trabalho de produção e reprodução da vida nenhum outro tipo de trabalho poderia existir. Assim, ao receber apoio do Estado, o cuidado passa a ter reconhecimento público e legitimidade social.

O pagamento de aposentadoria para mulheres que exerceram o papel de cuidadoras ao longo da vida remete à reivindicação de feministas da década de 1970, como Silvia Federici, que lutavam por salários para e contra o trabalho doméstico. Essa reivindicação também partia da constatação de que o trabalho realizado no âmbito privado não tinha o mesmo reconhecimento que o trabalho considerado clássico, aquele realizado pelos operários no chão da fábrica.

A Argentina tem sido um exemplo na promoção de políticas públicas relacionadas à igualdade de gênero. Além do reconhecimento do trabalho de reprodução social, o Congresso Nacional argentino, no ano passado, aprovou uma política nacional de legalização do aborto, a despeito da oposição da Igreja, fruto de uma articulação histórica entre os momentos feministas e as parlamentares. Outras políticas inclusivas merecem ser destacadas, entre elas, as cotas para pessoas trans no serviço público e a aprovação do documento de identidade para pessoas não-binárias.

Esses avanços não surgiram do nada. Pelo contrário, foram fruto de estratégias políticas bem-sucedidas protagonizadas pelos movimentos feministas e LGBTQIA+. Desde 2015, com os protestos do movimento Ni Una Menos, que denunciava a violência contra as mulheres e o aumento dos casos de feminicídio, as mobilizações feministas se intensificaram no país, em um movimento que ficou conhecido como “a onda verde”, em referência à cor dos lenços utilizados pelas ativistas.

Retomando a ideia de “crise do cuidado” formulada por feministas como Nancy Fraser, estamos vivendo um contexto internacional de fortalecimento do neoliberalismo e de desinvestimento estatal em políticas públicas, como creches e escolas públicas, o que acaba sobrecarregando ainda mais as mulheres. Aquelas que têm dinheiro, contratam outras mulheres, majoritariamente não-brancas e de classes populares, para realizar este trabalho, muitas vezes de forma precarizada e sem reconhecimento de direitos trabalhistas.

A pandemia de coronavírus acabou agravando essa “crise do cuidado”, uma vez que as mulheres tiveram que se desdobrar para dar conta tanto do trabalho remunerado quanto do trabalho de cuidado não remunerado, em um momento em que creches e escolas ficaram fechadas. Se as mulheres antes já não tinham tempo para descansar ou realizar atividades de lazer, com a pandemia os momentos de prazer ficaram ainda mais escassos, o que tem gerado impactos negativos sobre a saúde física e mental da população feminina. A pandemia escancarou o fato de que as mulheres ainda hoje são as principais responsáveis pelo trabalho de reprodução social. A conquista de nossas companheiras argentinas, portanto, representa uma luz no fim do túnel em direção a uma sociedade mais justa e igualitária para todas, todos e todes.

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