reprodução social na questão agrária

Chamada para dossiê Journal of Agrarian Change: A reprodução social na questão agrária: economia política feminista e transformações rurais no Sul Global (em inglês)

A chamada original (em inglês) pode ser encontrada aqui.

Organizadoras: Elena Baglioni, Hannah Bargawi, Alessandra Mezzadri, Lyn Ossome e Sara Stevano.

A pandemia de Covid-19 e suas consequências socioeconômicas revelaram quão central é a reprodução social para o funcionamento do capitalismo global (Mezzadri 2020, Stevano et al, 2021). Um novo e instigante conjunto de teorias e contribuições acadêmicas iluminou os modos como o neoliberalismo reestrutura as instituições e a arquitetura do cuidado, levando a uma crise da reprodução (Fraser, 2017; Bakker and Gill, 2019), e também evidenciou como a opressão social é constitutiva do processo de formação de classes, e não seu epifenômeno (Federici, 2004; Bannerji, 2005; Bhattacharya, 2017). Apesar das diferenças de abordagem e de objetivos  (Winders e Smith, 2019), essas teorizações reenergizaram antigos debates feministas sobre o papel do lar e sobre aspectos da opressão de gênero e de raça no capitalismo (cf. Davis, 1981; Mies, 1982). Essas novas abordagens vêm reconfigurando e expandindo debates sobre exploração e valor (Mezzadri, 2019; Ferguson, 2019; Cammack, 2020), sobre processos de racialização (Bhattacharyya, 2018; Glenn, 2010) e sobre as conexões entre opressão social e apropriação ecológica (Moore, 2015), também em um contexto em que movimentos sociais contra o patriarcado, o racismo e a destruição ambiental tornaram-se generalizados (Gago, 2018).

Se as lentes da reprodução social oferecem novos e interessantes caminhos para uma história do capitalismo mais inclusiva, elas também são uma oportunidade para revisitarmos debates centrais da questão agrária e da economia política do desenvolvimento. Mais especificamente, enquanto um volume cada vez maior de pesquisas busca “descolonizar” e descentrar as abordagens da reprodução social ao focar no Sul Global, no trabalho informal, ou em sistemas agrários (Naidu and Ossome, 2016; Mezzadri, 2017, 2020; Fernandez, 2018; Cousins et al., 2018; Stevano, 2019; Hornby and Cousins, 2019; Baglioni, 2021), e outros evidenciaram o quanto regimes de trabalho rural estavam incrustrados nas “zonas de reprodução” (Pattenden, 2018), mais pesquisas são necessárias para relacionar tais abordagens a estudos que analisam o desenvolvimento do capitalismo dentro de contextos agrários no Sul Global.

A fim de contribuir com essa agenda de pesquisa, esse Dossiê lança mão das lentes da reprodução social para conversar com teorias, debates e estudos empíricos na economia política da questão agrária. A economia política da questão agrária vem incorporando perspectivas de gênero e abordando o impacto das transformações rurais nas vidas de homens e mulheres por décadas (Whitehead, 1981; Mackintosh, 1989; Carney and Watts, 1991; Agarwal, 2003; Razavi, 2003; Rao, 2006; Jacobs, 2014; Tsikata, 2016). A partir dessas perspectivas críticas, o prisma da reprodução social oferece um arsenal teórico e metodológico complexo que ilumina como diferentes formas de desigualdade, como raça, etnicidade, casta, classe e gênero, se articulam e produzem efeitos no universo rural. Essa abordagem é focada nas inter-relações e dinâmicas entre processos de produção capitalista, de um lado, e aqueles que envolvem a regeneração da vida, de outro (Katz, 2001; Winders and Smith, 2019). Esses últimos envolvem a reprodução do trabalho e do ambiente, os quais operam para – e lutam contra – o capital. A perspectiva da reprodução social enfatiza o conflito inerente entre as forças de produção e as “forças de reprodução” (Barca, 2020), uma vez que o trabalho em sua forma racializada e generificada luta por autonomia em relação ao capital. Em contextos rurais, essa perspectiva pode auxiliar na superação de vieses produtivistas e levar a uma incorporação mais sistemática de perspectivas e métodos feministas na análise da questão agrária.

Ao mesmo tempo, por partir de uma rica tradição que analisa a transição do feudalismo para o capitalismo, os processos de diferenciação de classe, os modos de vida e as dinâmicas de subsistência no Sul global, a economia política da questão agrária tem o potencial de dar maior atenção às relações globais de re/produção e assim enriquecer a visada da reprodução social para além do seu horizonte urbano e industrial. A economia política da questão agrária foca, tradicionalmente, na emergência das classes e nos processos de diferenciação entre as pessoas no campo, os quais por vezes se perderam ou se borraram entre noções essencialistas de campesinato, agricultura familiar ou subsistência (Bernstein and Byres 2001; O’Laughlin, 2002). Trata-se de uma tradição que meticulosamente desconstrói relações sociais de produção no capitalismo e analisa as múltiplas maneiras que tais relações se manifestam em contextos agrários habitados por “classes do capital” ou “classes de trabalho” (Bernstein, 2010; Banaji, 2010; Harriss-White, 2014).

Na verdade, esse dossiê parte do trabalho de diversas acadêmicas que estudaram a questão agrária e, direta ou indiretamente, debruçaram-se sobre o lugar da reprodução na acumulação e/ou da formação de classe (Benholdt-Thomsen, 1982; Sharma, 1985; Sender and Smith, 1990; Chari, 2004;  Moyo and Yeros, 2005; Moyo et al., 2013; Shivji, 2017; Cousins et al, 2018); sobre o acesso à terra e os processos de proletarização no Sul Global (Ossome and Naidu, 2021); sobre o mito da industrialização e novas questões agrárias (Moyo et al 2013); sobre processos translocais, tais como a circulação de mão de obra e os efeitos da industrialização do campo (Hart, 2002; Lerche e Shah 2020); e sobre a relação entre produção, reprodução e saúde (O’Laughlin, 2013). Além disso, o dossiê também se apoia no excelente trabalho de economistas políticas sobre o papel e a centralidade do espaço doméstico e da provisão de cuidados nos processos de transformação rural (Razavi, 2009).

Essa edição especial do Journal of Agrarian Change visa analisar os espaços, temporalidades e práticas de reprodução social em contextos do Sul Global, tecendo reflexões mais amplas sobre como a perspectiva da reprodução social contribui para abordar, entender e analisar questões agrárias contemporâneas. Essa chamada está aberta para contribuições que:

1. Ilustrem a profunda inter-relação entre atividades e esferas produtivas e reprodutivas em contextos rurais e/ou em processos de circulação de trabalhadoras entre áreas urbanas e rurais. Análises e reflexões sobre os desafios vivenciados por trabalhadoras no Sul Global devido a pandemia são bem-vindas (por exemplo Agarwal, 2021; Stevano et al, 2021).

2. Revisitem a história, a representação e a evolução dos espaços domésticos nos processos de transformações rurais. Por exemplo, trabalhos que examinem a casa como espaço de sobreposição de atividades produtivas e reprodutivas, bem como de formação (e/ou oposição e resistência) de classe.

3. Investiguem processos de generificação e racialização na formação de classe dentro do campesinato e nas formas de vida camponesas, e como tais processos se inserem na dinâmica de acumulação de capital, bem como investiguem diferentes lutas pela reprodução.

4. Explorem novas formas de comoditização, incluindo os modos como aspectos legais e regulatórios de sistemas agroalimentares modelam processos racializados e generificados de produção e reprodução por toda a economia global.

5. Investiguem o papel da terra (incluindo acesso, posse e herança) nas dinâmicas de reprodução social no Sul Global, tanto em contextos rurais quanto urbanos (por exemplo Ossome e Naidu, 2021).

6. Examinem as conexões entre insegurança alimentar, nutricional e sanitária a partir da ótica da reprodução social, considerando não somente relações de gênero que tenham efeitos na alimentação, nutrição e na saúde, mas também a intersecção com outras desigualdades presentes em processos de produção e reprodução.

7. Analisem processos de degradação ambiental e seus efeitos em termos de reprodução social, os impactos nas classes de trabalhadores e nas lutas contra o aquecimento global, o extrativismo, a privatização e/ou os efeitos da degradação ambiental.

8. Com base em novas pesquisas, focadas em casos, períodos e locais particulares, desenvolvam e constituam a partir de debates existentes sobre a questão agrária, reflexões sobre como as perspectivas de reprodução social podem estender e até mudar nossa compreensão sobre tais debates. 

Uma vez que o objetivo do dossiê é decentralizar e descolonizar debates sobre reprodução social e revelar pontes com os debates sobre a questão agrária, as organizadoras convidam contribuições de diversos tipos, como artigos inédito, ensaios curtos, bem como notas de pesquisa sobre pesquisas originais, a fim de agrupar vozes e perspectivas analíticas múltiplas sobre a relevância da reprodução social no contexto da economia política da questão agrária. Convidamos, especialmente, contribuições de acadêmicas do Sul Global.

Interessadas devem enviar um resumo em inglês, com até 200 palavras para a Profa. Dra. Elena Baglioni no endereço e.baglioni@qmul.ac.uk. O prazo para a submissão de resumos é dia 30 de setembro de 2021.

As autoras selecionadas serão informadas no dia 31 de outubro de 2021, e deverão submeter seus textos completos até 30 de junho de 2022, também em inglês. Os artigos serão submetidos a um parecer do comitê editorial e o dossiê completo será enviado ao Journal of Agrarian Change no dia 15 de dezembro de 2022.

Em colaboração com a coletiva Marxismo Feminista, os artigos selecionados pelas editoras do dossiê serão traduzidos para português e publicados no nosso site marxismofeminista.com.

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