vendo por meio da pandemia: a reprodução social no holofote (II)

Foto de Quaritsch Photography no Unsplash.

Leslie Salzinger é professora na cadeira de gênero e estudos das mulheres na Universidade da Califórnia Berkeley. Em 2021, publicou “Seeing with the Pandemic: Social Reproduction in the Spotlight” na revista Feminist Studies 47(3), que trazemos traduzido aqui em duas partes. A primeira pode ser lida aqui e a segunda está reproduzida abaixo.

Agradecemos à Feminist Studies e à autora Lelis Salzinger por autorizarem essa tradução ao público brasileiro. A tradução é de Daniela Costanzo e a revisão é de Larissa Vannucci.


Vendo por meio da pandemia: a reprodução social no holofote (II)

Leslie Salzinger

No entanto, à medida que a pandemia de COVID-19 se espalha pelo país e pelo mundo, o segredo é revelado. O vírus trouxe a “rede de apoio” à tona e o que vemos é que ela está cheia de buracos. As anedotas fofas sobre crianças aparecendo nas reuniões de trabalho do Zoom vão ficando menos fofas. Pais afirmam que estão dividindo meio a meio o ensino em casa, enquanto as mães discordam, sugerindo que os pais talvez nem entendam todo o trabalho que é.1 As mulheres trabalhadoras com filhos em casa relatam que seu objetivo é “apenas sobreviver”.2 A Universidade do Estado da Flórida diz que seus trabalhadores não têm permissão para cuidar de crianças enquanto trabalham remotamente, e as mães explodem em resposta.3 Um artigo do New York Times viralizou com a manchete “Na economia da COVID, você pode ter um filho ou um emprego, mas não pode ter os dois” e teve mais de 2000 comentários.4 Vários relatos anedóticos sobre como a pandemia está diminuindo os ganhos no mercado de trabalho que as mulheres conquistaram ao longo das últimas duas décadas são fundamentados por um estudo que relata que, à medida que os cuidados infantis remunerados desapareceram, as horas de trabalho das mulheres caíram quatro a cinco vezes mais do que as dos seus maridos.5 Acontece que a “rede de apoio” não é nem o Estado nem o indivíduo racional, mas, novamente, as mulheres da família juntando os cacos. A natureza não-livre deste trabalho torna-se cada vez mais aparente. As mulheres não “escolhem” este trabalho, ele simplesmente faz parte do território de ser “mulher”, inerente ao eu feminizado. À medida que a pandemia traz a sobrevivência física para o centro da nossa atenção e a frágil infraestrutura que permitia às mães realizar “trabalho gratuito” entra em colapso, o trabalho reprodutivo torna-se visível como o trabalho obrigatório subjacente que torna todo o resto possível.

Parte do que gera as situações de estresse que vemos durante a COVID, é claro, é que, em circunstâncias normais, as mães não fazem todo o trabalho reprodutivo sozinhas. Pelo contrário, embora a importância da família como barreira contra o desastre tenha aumentado sob o neoliberalismo, o trabalho reprodutivo não remunerado das mulheres é cada vez mais complementado por trabalhadoras transnacionais racializadas e transformadas em mercadoria. Nos Estados Unidos, cerca de 70 por cento das mães e 90 por cento dos pais de crianças em idade escolar estavam no mercado de trabalho remunerado em 2016.6 Embora as mulheres negras sempre tenham sido obrigadas a realizar trabalho remunerado e não remunerado,7 a proporção de mulheres negras e brancas na força de trabalho remunerada cresceu acentuadamente a partir de 1950 e de forma ainda mais dramática após 1970.8 À medida que mulheres e homens trabalham mais horas em todas as estruturas raciais e de classe, o trabalho reprodutivo remunerado fora de casa disparou para complementar os cuidados familiares, e a atenção íntima tornou-se cada vez mais estratificada por classe, raça e localização.9 Como resultado, a preparação de alimentos, a limpeza, o cuidado dos idosos e dos filhos são cada vez mais intensamente mercantilizados, terceirizando assim o trabalho de sobrevivência, mesmo que a sua complexa coordenação geralmente permaneça nas mãos das mulheres nas famílias.10 O neoliberalismo é frequentemente reconhecido como uma mudança nas fronteiras entre o Estado “público” e o capital “privado”. Vemos um movimento semelhante dos limites no domínio da reprodução social, à medida que grande parte do trabalho de cuidado é mercantilizado e transferido para o mercado.11 O neoliberalismo reestrutura tanto a reprodução como a produção: todos trabalham mais horas por remuneração e os recursos atribuídos ao trabalho de produção e reprodução de pessoas estão cada vez mais distribuídos de forma desigual no espaço, na raça e na classe.12

Neste “sistema” de reprodução social sobrecarregado e em retalhos, o vírus se intromete, minando os ritmos afinados dos arranjos de cuidados familiares.13 Diante da pandemia, as escolas fecharam de forma imprevisível e as creches fecharam em todo o país. As casas de repouso para idosos foram fechadas, não permitindo a entrada ou saída de ninguém, e as famílias que tinham condições levaram seus familiares mais velhos para suas casas. Os cuidadores domiciliares de crianças e os auxiliares de saúde domiciliar que cuidavam de pacientes idosos foram considerados possíveis vetores de doenças e foram demitidos. Muitos restaurantes continuam fechados no país todo. Mais homens estão ajudando com o cuidado das crianças e da casa, já que ficar em casa o dia todo revela aspectos do trabalho reprodutivo que eles conseguiam ignorar anteriormente,14 mas as mulheres ainda estão juntando os cacos. As famílias estão sozinhas e todos estão lutando com a quantidade de trabalho que isso exige.15 Hoje em dia, o terreno desgastado da reprodução social está à mostra e não é uma paisagem bonita.

Os lares estão estressados, mas, na verdade, no centro da tempestade viral estão os trabalhadores remunerados do cuidado. Recentemente exaltados como “heróis”, eles são responsáveis pelo trabalho público de alimentar e cuidar dos outros num momento em que o próprio contato humano direto se tornou perigoso. Cuidados de saúde, mercado e outros serviços de alimentação, trabalhos de cuidado residenciais e privados estão todos “envolvidos em manter as pessoas, tanto diariamente como intergeracionalmente”, e todos foram definidos como “essenciais” em ordens executivas durante a pandemia.16 Hoje, tal como no passado, esses trabalhadores são majoritariamente mulheres negras e ganham bem abaixo da mediana de renda dos EUA.17 Os Estados Unidos têm um estado de bem-estar social notoriamente inadequado, mas mesmo aqui, com a chegada da COVID-19, os subsídios de desemprego foram amplamente disponibilizados aos trabalhadores demitidos, aos quais foi pedido que deixassem de sair para trabalhar e ficassem em casa para manter a segurança da comunidade. Todos, exceto os “trabalhadores essenciais”, isto é, os que foram “autorizados” a continuar trabalhando e, portanto, não eram elegíveis para apoio estatal caso decidissem se preservar dos perigos do trabalho. À medida que o vírus emergia como uma força ameaçadora à vida e o Estado intervinha para evitar o colapso econômico total, fornecendo subsídios de desemprego aos trabalhadores demitidos, a ironia de que fazer “trabalho essencial” significava não ter a opção de ficar em casa revelou-se evidente.18 Sem novos empregos disponíveis e sem acesso ao desemprego, ser considerado “essencial” durante a pandemia significou ficar preso ao trabalho; neste sentido, os “trabalhadores essenciais”, como as mães noutro registo, já não são mão-de-obra gratuita.

Este elemento não reconhecido de coerção foi acompanhado, num outro eco perturbador da maternidade, com ondas de elogio e admiração. Trabalhadores essenciais são heróis! Cuidar de crianças e ensiná-las é difícil! Ser enfermeira é ter coragem! Vender mantimentos é um serviço à comunidade! No início da pandemia, em todo o país, adultos agradecidos e crianças alegres ficavam nas janelas e nas varandas para bater palmas e panelas todas as noites às 19h em homenagem aos “trabalhadores essenciais”. É impressionante como, mesmo quando mercantilizado, a dupla profana de amor e desvalorização continua a encobrir o trabalho reprodutivo, enquadrado por gênero e raça simultaneamente.

Sociólogos e líderes comunitários identificaram repetidamente esta dinâmica no trabalho de cuidado, uma expectativa de que os trabalhadores que cuidam de crianças e idosos tratem o seu trabalho como um “trabalho de amor”, mesmo que estes empregos não se qualifiquem legalmente para horas extras ou seguros desemprego normais – e muito desse trabalho é feito à sombra da economia formal. O que impressiona mais no momento atual é ver como isso reverbera para além do domínio do trabalho de cuidado e para o que Mignon Duffy chama de “trabalho reprodutivo não nutritivo”, como limpar, cozinhar e preparar alimentos.19 Balconistas de supermercados (sem máscaras) e enfermeiros (sem equipamentos de proteção) reivindicam que se candidataram para um emprego e não para uma sentença de morte. Como resposta, eles são chamados de heróis e mantidos trabalhando.20 Num eco revelador da maternidade, os “trabalhadores essenciais” encontram-se simultaneamente coagidos, desprotegidos, mal pagos e sacralizados.

A vida é uma pré-condição e por vezes um subproduto do capitalismo, mas o próprio sistema é organizado para o lucro. Observar por dentro e através da pandemia é questionar-se sobre as possibilidades de sobrevivência humana dentro de uma lógica capitalista. Os atrativos característicos do capitalismo neoliberal – autonomia e liberdade – têm pouca ressonância no domínio da reprodução social. Em vez disso, a obrigação e o amor são a moeda de troca. A COVID-19 tornou mais uma vez evidente que a autonomia depende da comunidade e a liberdade depende do amor e da obrigação, mas apoiamos apenas as primeiras partes destas equações. Tal como o homo economicus desenraizado e puramente egoísta é uma ficção de gênero e raça, o mesmo acontece com a ideia de exploração formal como um processo auto suficiente. A exploração capitalista é um parasita; a reprodução social é o seu hospedeiro, e neste momento o hospedeiro não está prosperando. Ver as consequências disto à luz brutal da pandemia nos leva a perguntar: Como seria a arena da reprodução social se não fosse organizada para alimentar a exploração, mas sim para nutrir os seus ocupantes? Poderá a pandemia nos levar a nos centrar no florescimento humano?

Marx pensava que o trabalho livre seria a sua própria ruína. O tempo provou que ele estava errado, a COVID-19 nos ajuda a entender por quê. Com uma clareza brutal, a pandemia revela como o trabalho reprodutivo não livre, baseado em gênero e raça, sustenta a sobrevivência do sistema quando este é posto em questão. Ao fazê-lo, a pandemia também nos convida a olhar para o futuro, a perguntar não quando voltaremos ao “normal”, mas como será o mundo que gostaríamos de construir à medida que afloramos. Desafiar a lógica capitalista é necessário para a sobrevivência. Questionar a lógica da reprodução social, das relações normativas de cuidado dentro e fora da família faz parte do necessário repensar do mundo que a doença tanto incita, como exige.21


Notas
1 Claire Cain Miller, “Nearly Half of Men Say They Do Most of the Home Schooling. 3 Percent of Women Agree,” New York Times, 6 de maio de 2020.
2 Emma Jacobs e Laura Noonan, “Is the Coronavirus Crisis Taking Women Back to the 1950s?” Financial Times, 13 de Junho de 2020.
3 Lilah Burke, “Florida State Bars Parenting During Remote Work,” Inside Higher Ed, 30 de junho de 2020.
4 Deb Perelman, “In the Covid-19 Economy, You Can Have a Kid or a Job. You Can’t Have Both,” New York Times, 2 de julho de 2020.
5 Emily Barone, “Women Were Making Historic Strides in the Workforce. Then the Pandemic Hit,” Time, 10 de junho de 2020; Alexandra Topping,“COVID-19 Crisis Could Set Women Back Decades, Experts Fear,” The Guardian, 29 de maio de 2020; Caitlyn Collins, Liana Christin Landivar, Leah Ruppanner, William J. Scarborough, “COVID-19 and the Gender Gap in Work Hours,” Gender, Work and Organization 28 (Julho 2020): 101–12.
6Labor Force Participation Rate of Mothers and Fathers by Age of Youngest Child,” Women’s Bureau, US Department of Labor.
7 Angela Davis, Mulheres, Raça e Classe (São Paulo: Boitempo, 2016).
8 Leah Platt Boustan and William J. Collins, “The Origins and Persistence of Black-White Differences in Women’s Labor Force Participation” (working paper, National Bureau of Economic Research, Maio de 2013),.
9 Mignon Duffy, Making Care Count: A Century of Gender, Race, and Paid Care Work (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2011).
10 Judith Shulevitz, “Mom: The Designated Worrier,” New York Times, 8 de maio de 2015; Allison Daminger, “The Cognitive Dimension of Household Labor,” American Sociological Review 84:4 (2019).
11 Arlie Russell Hochschild, The Outsourced Self: What Happens When We Pay Others to Live Our Lives for Us (London: Picador Press, 2013).
12 Rhacel Salazar Parreñas, “Migrant Filipina Domestic Workers and the International Division of Reproductive Labor,” Gender and Society 14:4 (August 2000); Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, Feminismo Para os 99%: um Manifesto (São Paulo: Boitempo, 2019).
13 Ver Karen V. Hansen, Not-So-Nuclear Families: Class, Gender, and Networks of Care (New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2005) para exemplos da vertiginosa complexidade dos arranjos de cuidados infantis nas famílias americanas contemporâneas.
14 Daniel L. Carlson, Richard Petts, and Joanna R. Pepin, “US Couples’ Divisions of Housework and Childcare During COVID-19 Pandemic,” SocArXiv, 6 de maio de 2020; Martin Gelin, “The Pandemic Has Reshaped American Fatherhood. Can It Last?” New York Times, 21 de junho de 2020.
15 Kim Brooks, “Forget Pancakes. Pay Mothers,” New York Times, 8 de maio de 2020.
16 Glenn, “From Servitude to Service Work,” 1.
17 Celine McNicholas and Margaret Poydock, “Who Are Essential Workers? A Comprehensive Look at Their Wages, Demographics, and Unionization Rates,” Working Economics Blog, Economic Policy Institute, April 19, 2020, ; Hye Jin Rho, Hayley Brown, and Shawn Fremstad, “A Basic Demographic Profile of Workers in Frontline Industries” (Washington, DC: Center for Economic and Policy Research, special report, 2020),
18 Sarah Jane Glynn, “Coronavirus Paid Leave Exemptions Exclude Millions of Workers from Coverage,” Center for American Progress, 17 de abril de 2020. ; Campbell Robertson and Robert Gebeloff, “How Millions of Women Became the Most Essential Workers in America,” New York Times, 18 de abril de 2020.
19 Duffy, Making Care Count.
20 Ryan Kost, “Essential and Ignored: Working in a Pandemic,” San Francisco Chronicle, 19 de julho de 2020.
21 Kathi Weeks, “‘Hours for What We Will’: Work, Family, and the Movement for Shorter Hours,” Feminist Studies, 35:1 (2009); Sophie Lewis, Full Surrogacy Now: Feminism Against Family (London: Verso Books, 2019).

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